André Reis era um nome
repetido na fileira de dominós dos livros na estante, eram sete
volumes e ela só tinha uma expectativa: o lançamento do novo
romance.
André Reis não estava
sozinho no reino literário que Ana criara em seu apartamento. O
acompanhavam volumes nobres de cartola e bengala e até bobos da
corte, os quais ela tinha pena de expulsar da pólis.
Como não gostava de
reler livros para não perder tempo, pois tinha tantos ainda
intactos, salivava na emoção de completar sua coleção com o
próximo livro publicado: Flores mortas. Certamente um romance
brutal, trágico, pesado, como gostava que fossem e como André
gostava de escrever. Eram almas gênias.
Certo dia, Ana resolveu
comprar alguns livros em um site de venda de exemplares usados,
sebosos e ensebados. Por pura obsessão, buscou o nome André Reis.
Ao visualizar a lista teve a satisfação de perceber toda sua
coleção se completando, até que no caminho para chegar ao último
título, um obstáculo de interpôs: uma obra que não conhecia.
Conferiu a autoria. Tinha foto no site. Surpreendentemente intitulado
Último inferno. Tragicamente. Um frio percorreu sua espinha, clicou
de ansiedade no produto e fechou a compra. Assustada, levantou-se e
foi beber água. Jamais ouvira falar sobre aquele livro. Estava
errada o tempo todo! Há um livro para ser lido antes do lançamento
de Flores Mortas e isso era fantástico.
Acompanhou o pedido via
e-mail, não conseguiu se concentrar em outras leituras e trabalhava
mal, pensando no livro, em como ficara tanto tempo na ilusão de ter
sua coleção completa. André Reis era seu escritor preferido,
perfeito manipulador das palavras e guardava um segredo.
Depois de uma tarde
inquieta no trabalho, chegou em casa e foi avisada pelo porteiro de
que acabara de receber um pacote. Correu para buscá-lo e foi
rasgando o envelope plástico forrado de bolhas com os dentes.
Finalmente Último
inferno. Jogou a bolsa no chão e sentou-se para ler as cento e
trinta páginas de bônus de André Reis. Enquanto lia, a noite se
aproximava, escurecendo a sala de estar, tornando a leitura árdua.
Ana, porém, resistia, lia sem pensar, como se pudesse. Lia sem
parar, apertando os olhos, envesgando-os, quase lacrimejando.
Capa branca com um
círculo vermelho no centro. O nome do autor no alto, em vez de
editora, o nome de uma gráfica. Sem referências importantes na
orelha. Apenas o resumo na contracapa. Romance brasileiro.
Na parte interna da
capa, escrito à lápis, o e-mail do autor, provavelmente anotado
pelo primeiro dono, talvez um conhecido que comprara por
solidariedade, consideração ou pena. Me mande seus comentários
sobre o livro, imaginou André falando no dia do lançamento. Se é
que houve lançamento, pois não havia autógrafo. Quem sabe o leitor
tenha conseguido o e-mail para enviar suas considerações:
Prezado André Reis,
Ana chegou a ligar o
computador para escrever ela mesma um e-mail, mas desistiu. A luz da
tela iluminando seu rosto e levemente também a estante. Acabou
entrando em seu perfil de uma rede social onde havia um cartaz
convidando: Lançamento de Flores Mortas e tarde de autógrafos com
André Reis. Seria dali a dois dias.
Acordou sentindo a
passagem de 48 horas e vestiu-se para o lançamento. Arrumou sua
bolsa e guardou nela Último inferno. Pegou um táxi que não tinha
ar condicionado, pensou no livro que tinha dentro da bolsa, viu que o
motorista a olhava pelo retrovisor calado e nojento. Queria sair
daquele táxi tanto quanto queria chegar à livraria. Contudo, a não
ilusão de concretude urbana a fazia se atrasar: muitos sinais, ruas
engarrafadas e, ironicamente, nenhum livro para ler. Os olhos do
motorista, Ana acordando do sonho. Trinta reais, moça. A porta de
vidro, pessoas lá dentro se misturando aos livros.
Ana entrou, mas não
foi em direção à fila que conduzia ao encontro com o escritor. Em
vez disso, circulou entre as estantes e viu livros que vira tantas
vezes antes. Viu uma pilha de Flores mortas e outra pilha tão grande
quanto através da parede espelhada da livraria. Olhou-se, viu-se tão
como André. Os mesmo olhos. Sentiu o livro que carregava na bolsa
vivo como um filho que quisera abortar.
Foi até a mesa de
André Reis e o viu tal qual a si mesma. O mesmo olhar compreensivo
com os que sabem menos. Olhou suas próprias mãos e viu as veias e
pelos masculinos. O livro pulsando na bolsa, pulando, querendo a
liberdade que Ana daria ao sair da livraria correndo, caminhando
entre as ruas da cidade, parando em uma agência de correios e
novamente andando até chegar em casa. Cansada, mas pronta para
desarrumar sua estante. Tirou todos os livros da ordem,
desemparelhou-os, sentou-se no chão para reler pedaços de histórias
para dormir.
Dias depois abriu a
busca do sebo virtual e buscou André Reis. Percorreu a lista e a viu
completa: Flores mortas já estava disponível para a venda e o único
exemplar de Último inferno completava a coleção.