quarta-feira, 22 de julho de 2009

Minha África

Penso na minha origem, nas minhas raízes. É uma dor funda saber que nasci da escravidão. Certeza de que vim de violência tão grande que até faz mal imaginar.

Mas imagino. Penso: de onde vim? De que tribo? Será que levaram a família toda ou ficou alguém por lá? Qual de nós morreu no caminho?

Estou em Cabo Verde, na beira da praia sentada em uma pedra, olhando o mar. Eles não queriam ir, por isso voltei. Dá vontade de chorar. O coração aperta diante de cada casinha que vejo. Será que minha família morava ali? Todas as velhas pretas são minhas avós. Sinto vontade de acarinhá-las.

De repente surge um menininho correndo atrás de uma bola que rola até perto de mim, da pedra onde estou sentada. Fico olhando a bola e esperando o menino se aproximar. Sua cabeça redondinha, raspada. Os olhos redondos também, protuberantes. Um irmãozinho, um priminho. Abraço o menino que, assustado, não me corresponde: olho-o com os olhos cheios d’água. Ele não me compreende, mas me permite. Talvez nem seja a primeira.

Devem me achar louca, e sou.

Vou procurar algo para comer e encontro à beira-mar um restaurante de pescadores. Peço peixe ao estilo local. Só o peixe e um refrigerante. Minha vontade é comer com as mãos e lavá-las na água suja de óleo daquele mar de onde me levaram. Mas há talheres e devo usá-los. O peixe tem gosto de peixe e o refrigerante, o mesmo que em qualquer lugar do mundo.

No guardanapo enxergo um barquinho de papel. Faço a dobradura, vou até o mar e o ofereço. O pescador-atendente me olha intrigado, talvez pense que sairia sem pagar. Volto e pago. Vou embora pensando se o barquinho chegará à minha casa dizendo “encontrei, mãe, encontrei os meus pais”.

O cais começa a esvaziar. Todos entrarão nas casas para comer e descansar. E eu caminharei.
Durante a caminhada percebo que ainda estou com fome, já que a carne leve do peixe sozinha não é capaz de saciar.

Na rua, encontro uma barraquinha de bolinho típico. É saboroso. O vendedor conta que muita gente almoça esse bolinho. Imagino minha avó cozinhando para as crianças, mas logo uma buzina a arranca dos meus pensamentos como ela foi arrancada do preparo da comida na véspera de ser embarcada no navio.

Aquele bolinho exposto na rua era a carne dos meus avós. A carne cozida na água e no sal do oceano.

A cor da pele e a textura dos cabelos o sangue nos dera. A língua, Portugal.

Todos festejaram minha presença. Seja bem-vinda, minha filha. Pródiga. Tenho presentes. Boas novas! Podemos ser de novo um.

O vendedor me convida para conhecer sua esposa. Encontro-a no quintal trançando o cabelo da filha. Conversamos enquanto assistia à operação.

A menina, toda vaidosa, acompanha por um espelho a transformação de seu cabelo. Digo que está ficando linda e ela sorri.

Mais crianças chegam para me cumprimentar. Uma ternura me invade. Abraço e beijo-os todos ajoelhada no chão sob o olhar materno-paterno.

O menorzinho tenta arrancar meus óculos. As meninas reparam minha roupa. É delícia como a gente se toca. Os corpos quase iguais. Suas peles apessegadas e empoeiradas do chão do quintal e da vida. Alguns também têm os cabelos trançados. A mãe percebe que eu os olho e me pergunta se gostaria de fazer tranças.

Sento-me na cadeira e recebo o espelho. A mão começa a eriçar meu cabelo, reparti-lo e repuxá-lo lançando uma mecha sobre a outra. O processo é demorado e prazeroso porque estou no seio da minha família. Da minha África.

Anoitece na casa da família do vendedor de bolinhos. Meu cabelo pronto, lindo. Entramos na casa e nos sentamos em frente à televisão. A mãe vem da cozinha e chama a todos para jantar.
Comemos e amamos juntos. Conto da minha terra distante. Minha casa, minha outra casa agora. Falo dos nossos que estão lá. O que existe lá. E ouço doces histórias da nossa ilha e do nosso mar em comum.

Digo que quero voltar, mas desejo ficar. O pai me fala que esse é nosso destino: a dor do partir-ficar. E me diz que fique mais uma noite. Levam-me de novo para o quintal e me apresentam ao céu estrelado. O mesmo céu dos meus antepassados. Soube: dali tinha vindo. E durmo, esta noite, na casa dos meus pais.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Livros me dão náusea 12

Lendo Noites na Taverna e Macário (ainda). E na metade de Dois irmão do Milton Hatoum. É um bom livro, nunca tinha lido o autor, mas esperava um pouco mais.