domingo, 12 de maio de 2013

Fim do romance


André Reis era um nome repetido na fileira de dominós dos livros na estante, eram sete volumes e ela só tinha uma expectativa: o lançamento do novo romance.

André Reis não estava sozinho no reino literário que Ana criara em seu apartamento. O acompanhavam volumes nobres de cartola e bengala e até bobos da corte, os quais ela tinha pena de expulsar da pólis.

Como não gostava de reler livros para não perder tempo, pois tinha tantos ainda intactos, salivava na emoção de completar sua coleção com o próximo livro publicado: Flores mortas. Certamente um romance brutal, trágico, pesado, como gostava que fossem e como André gostava de escrever. Eram almas gênias.

Certo dia, Ana resolveu comprar alguns livros em um site de venda de exemplares usados, sebosos e ensebados. Por pura obsessão, buscou o nome André Reis. Ao visualizar a lista teve a satisfação de perceber toda sua coleção se completando, até que no caminho para chegar ao último título, um obstáculo de interpôs: uma obra que não conhecia. Conferiu a autoria. Tinha foto no site. Surpreendentemente intitulado Último inferno. Tragicamente. Um frio percorreu sua espinha, clicou de ansiedade no produto e fechou a compra. Assustada, levantou-se e foi beber água. Jamais ouvira falar sobre aquele livro. Estava errada o tempo todo! Há um livro para ser lido antes do lançamento de Flores Mortas e isso era fantástico.

Acompanhou o pedido via e-mail, não conseguiu se concentrar em outras leituras e trabalhava mal, pensando no livro, em como ficara tanto tempo na ilusão de ter sua coleção completa. André Reis era seu escritor preferido, perfeito manipulador das palavras e guardava um segredo.

Depois de uma tarde inquieta no trabalho, chegou em casa e foi avisada pelo porteiro de que acabara de receber um pacote. Correu para buscá-lo e foi rasgando o envelope plástico forrado de bolhas com os dentes.

Finalmente Último inferno. Jogou a bolsa no chão e sentou-se para ler as cento e trinta páginas de bônus de André Reis. Enquanto lia, a noite se aproximava, escurecendo a sala de estar, tornando a leitura árdua. Ana, porém, resistia, lia sem pensar, como se pudesse. Lia sem parar, apertando os olhos, envesgando-os, quase lacrimejando.

Capa branca com um círculo vermelho no centro. O nome do autor no alto, em vez de editora, o nome de uma gráfica. Sem referências importantes na orelha. Apenas o resumo na contracapa. Romance brasileiro.

Na parte interna da capa, escrito à lápis, o e-mail do autor, provavelmente anotado pelo primeiro dono, talvez um conhecido que comprara por solidariedade, consideração ou pena. Me mande seus comentários sobre o livro, imaginou André falando no dia do lançamento. Se é que houve lançamento, pois não havia autógrafo. Quem sabe o leitor tenha conseguido o e-mail para enviar suas considerações:
Prezado André Reis,

Ana chegou a ligar o computador para escrever ela mesma um e-mail, mas desistiu. A luz da tela iluminando seu rosto e levemente também a estante. Acabou entrando em seu perfil de uma rede social onde havia um cartaz convidando: Lançamento de Flores Mortas e tarde de autógrafos com André Reis. Seria dali a dois dias.

Acordou sentindo a passagem de 48 horas e vestiu-se para o lançamento. Arrumou sua bolsa e guardou nela Último inferno. Pegou um táxi que não tinha ar condicionado, pensou no livro que tinha dentro da bolsa, viu que o motorista a olhava pelo retrovisor calado e nojento. Queria sair daquele táxi tanto quanto queria chegar à livraria. Contudo, a não ilusão de concretude urbana a fazia se atrasar: muitos sinais, ruas engarrafadas e, ironicamente, nenhum livro para ler. Os olhos do motorista, Ana acordando do sonho. Trinta reais, moça. A porta de vidro, pessoas lá dentro se misturando aos livros.

Ana entrou, mas não foi em direção à fila que conduzia ao encontro com o escritor. Em vez disso, circulou entre as estantes e viu livros que vira tantas vezes antes. Viu uma pilha de Flores mortas e outra pilha tão grande quanto através da parede espelhada da livraria. Olhou-se, viu-se tão como André. Os mesmo olhos. Sentiu o livro que carregava na bolsa vivo como um filho que quisera abortar.

Foi até a mesa de André Reis e o viu tal qual a si mesma. O mesmo olhar compreensivo com os que sabem menos. Olhou suas próprias mãos e viu as veias e pelos masculinos. O livro pulsando na bolsa, pulando, querendo a liberdade que Ana daria ao sair da livraria correndo, caminhando entre as ruas da cidade, parando em uma agência de correios e novamente andando até chegar em casa. Cansada, mas pronta para desarrumar sua estante. Tirou todos os livros da ordem, desemparelhou-os, sentou-se no chão para reler pedaços de histórias para dormir.

Dias depois abriu a busca do sebo virtual e buscou André Reis. Percorreu a lista e a viu completa: Flores mortas já estava disponível para a venda e o único exemplar de Último inferno completava a coleção.