quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Cinderela Carioca
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
Casa vazia
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Livros me dão náuseas
Como todos os outros... prometo não terminá-lo, desejo não cumprir promessas!
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Origem
questiona suas origens. Afro.
Origens.
Afrorigem.
Quer saber de onde veio. De onde eu vim.
De onde veio o samba que neguinho dança.
De onde veio o som que o playboyzinho dança.
De onde veio o rock que americano dança.
De onde vieram afrosons.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Livros me dão náusea 16
Moçambique; Brasil; Portugal
"Os meus passos não criam eco, a minha voz não tem sombra. É a ti que vejo porque não consigo deixar de te pensar." Inês Pedrosa
"Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acretido, sim, por educação. Mas não creio." Mia Couto
"A inspiração é como um misterioso cheiro de âmbar. Tenho um pedacinho desse âmbar comigo." Clarice Lispector
A impossibilidade de um desequilíbrio mental: é prisão em que vivo.
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Procuro
pra me libertar
Dos dias sem fim,
do meio
das horas.
Pra libertar
do patrulhamento rotineiro
do risco de janeiro.
domingo, 25 de outubro de 2009
Motivo de poesia
não de poetas.
Poetas há muitos:
parnasianos, simbolistas.
Precisa-se de poesia,
da vida.
Da vida da poesia.
Poetas nascerão
que não atinjam a vida da poesia.
O vaivém
as pernas avenidas
os braços usinas.
Poetas morrerão
sem saber da
poesia da vida.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Pidona
- Me dá um pouquinho, mãe?
Mamãe me deu um punhado de lindos cubinhos que pus todo na boca.
“Menina pidona” – pensou mamãe achando graça.
Na escola os amiguinhos compravam batata-frita na cantina, o lanche mais caro da escola. Meus pais me davam dinheiro pra comprar, mas o dos outros era sempre mais gostoso:
- Me dá um pouquinho?
Geralmente eu ganhava. Mas chorava se não me dessem. Mas enquanto fui pequena sempre havia um piedoso.
- Tadinha, toma, eu dou o meu.
E eu ficava toda feliz, saia saltitando.
Quando era dia de São Cosme e São Damião minha felicidade crescia:
- Moço, me dá um saquinho? Dá um pro meu irmão? E um pra minha irmã?
Com os três saquinhos na mãe ia em direção à mamãe. E ela “Menina pidona”.
Adolescente eu pedia às meninas:
- Me dá um pouquinho do seu perfume? Do seu batom?
E saia mais linda e cheirosa que elas, porque sabia pedir.
- Me dá um pouquinho de você?
E ganhava um pedacinho do namorado de cada uma.
“Menina pidona”.
E pedindo, pedindo, chegou o dia em que desejei me casar:
- Me dá sua mão em casamento?
E ganhando, ganhando, chegou o dia em que recebi um não definitivo.
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Livros me dão náusea 15
terça-feira, 6 de outubro de 2009
Livros me dão náusea 14
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
mulher jogando flores na Baía da Guanabara
Entrou na barca. Velho percurso Rio-Niterói, feito pelas barcas velhas de fim de semana. Sentou-se à janela com um maço de flores nas mãos: rosas brancas. Quando já íamos pelo meio da Baía, concentrada no olhar-prece, começou a lançar lentamente as flores: rosas brancas.
Imaginei que seriam por uma morte recente e ainda doída. Depois que fossem seis flores, cada uma para seus seis mortos:
Para meu pai, morto em 1977; para meu avô, morto em 1980; para minha filha, morta ainda no útero; para minha cunhada, morta em 1992; para meu sogro, morto em 1995; para meu vizinho, morto em 2009.
Imaginei que fossem para todos os mortos em desastres cujos corpos jamais foram encontrados no mar.
Por último imaginei que fossem pelos vivos que correm o terrível risco de viver. Imaginei e desejei: rosas brancas.
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Livros me dão náusea 13
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Minha África
Mas imagino. Penso: de onde vim? De que tribo? Será que levaram a família toda ou ficou alguém por lá? Qual de nós morreu no caminho?
Estou em Cabo Verde, na beira da praia sentada em uma pedra, olhando o mar. Eles não queriam ir, por isso voltei. Dá vontade de chorar. O coração aperta diante de cada casinha que vejo. Será que minha família morava ali? Todas as velhas pretas são minhas avós. Sinto vontade de acarinhá-las.
De repente surge um menininho correndo atrás de uma bola que rola até perto de mim, da pedra onde estou sentada. Fico olhando a bola e esperando o menino se aproximar. Sua cabeça redondinha, raspada. Os olhos redondos também, protuberantes. Um irmãozinho, um priminho. Abraço o menino que, assustado, não me corresponde: olho-o com os olhos cheios d’água. Ele não me compreende, mas me permite. Talvez nem seja a primeira.
Devem me achar louca, e sou.
Vou procurar algo para comer e encontro à beira-mar um restaurante de pescadores. Peço peixe ao estilo local. Só o peixe e um refrigerante. Minha vontade é comer com as mãos e lavá-las na água suja de óleo daquele mar de onde me levaram. Mas há talheres e devo usá-los. O peixe tem gosto de peixe e o refrigerante, o mesmo que em qualquer lugar do mundo.
No guardanapo enxergo um barquinho de papel. Faço a dobradura, vou até o mar e o ofereço. O pescador-atendente me olha intrigado, talvez pense que sairia sem pagar. Volto e pago. Vou embora pensando se o barquinho chegará à minha casa dizendo “encontrei, mãe, encontrei os meus pais”.
O cais começa a esvaziar. Todos entrarão nas casas para comer e descansar. E eu caminharei.
Durante a caminhada percebo que ainda estou com fome, já que a carne leve do peixe sozinha não é capaz de saciar.
Na rua, encontro uma barraquinha de bolinho típico. É saboroso. O vendedor conta que muita gente almoça esse bolinho. Imagino minha avó cozinhando para as crianças, mas logo uma buzina a arranca dos meus pensamentos como ela foi arrancada do preparo da comida na véspera de ser embarcada no navio.
Aquele bolinho exposto na rua era a carne dos meus avós. A carne cozida na água e no sal do oceano.
A cor da pele e a textura dos cabelos o sangue nos dera. A língua, Portugal.
Todos festejaram minha presença. Seja bem-vinda, minha filha. Pródiga. Tenho presentes. Boas novas! Podemos ser de novo um.
O vendedor me convida para conhecer sua esposa. Encontro-a no quintal trançando o cabelo da filha. Conversamos enquanto assistia à operação.
A menina, toda vaidosa, acompanha por um espelho a transformação de seu cabelo. Digo que está ficando linda e ela sorri.
Mais crianças chegam para me cumprimentar. Uma ternura me invade. Abraço e beijo-os todos ajoelhada no chão sob o olhar materno-paterno.
O menorzinho tenta arrancar meus óculos. As meninas reparam minha roupa. É delícia como a gente se toca. Os corpos quase iguais. Suas peles apessegadas e empoeiradas do chão do quintal e da vida. Alguns também têm os cabelos trançados. A mãe percebe que eu os olho e me pergunta se gostaria de fazer tranças.
Sento-me na cadeira e recebo o espelho. A mão começa a eriçar meu cabelo, reparti-lo e repuxá-lo lançando uma mecha sobre a outra. O processo é demorado e prazeroso porque estou no seio da minha família. Da minha África.
Anoitece na casa da família do vendedor de bolinhos. Meu cabelo pronto, lindo. Entramos na casa e nos sentamos em frente à televisão. A mãe vem da cozinha e chama a todos para jantar.
Comemos e amamos juntos. Conto da minha terra distante. Minha casa, minha outra casa agora. Falo dos nossos que estão lá. O que existe lá. E ouço doces histórias da nossa ilha e do nosso mar em comum.
Digo que quero voltar, mas desejo ficar. O pai me fala que esse é nosso destino: a dor do partir-ficar. E me diz que fique mais uma noite. Levam-me de novo para o quintal e me apresentam ao céu estrelado. O mesmo céu dos meus antepassados. Soube: dali tinha vindo. E durmo, esta noite, na casa dos meus pais.
terça-feira, 14 de julho de 2009
Livros me dão náusea 12
terça-feira, 23 de junho de 2009
Livros me dão náusea 11
Por enquanto... Noites na Taverna e ainda O evangelho segundo Jesus Cristo.
terça-feira, 16 de junho de 2009
Relicário
Às vezes pensava: ninguém gosta realmente de saber a verdade. Muito menos ele gostaria de saber que tudo estava próximo de terminar.
Quando Joana foi embora, Roberto tentou fazê-la ficar. Disse a todos em redor que a salvassem, que ele não poderia ser abandonado. Recebeu em troca alguns comprimidos para dormir. Mas os sonos dos remédios são dolorosos e nos fazem acordar cansados e culpados.
Roberto voltou à casa sozinho na companhia de amigos. Sentou-se no sofá imaginando a mentira em que vivera. Nada o fazia perdoá-la. Quem poderia amá-la como eu? E em troca mentira.
Os amigos se foram. Nos primeiros dias, revezavam-se com medo de que ficasse sozinho em meio a tanta dor e lembrança. Não vou me matar, se é isso que os preocupa. Pensava Roberto sem coragem de dizer porque não estava convicto desse pensamento.
Passou a dormir ao lado daqueles enormes montes de roupa. À noite virava-se para elas e aspirava seu cheiro de Joana. Sonhava com ela, perguntando o porquê de nunca ter contado sobre sua doença. No que ela respondia que não estragaria a vida maravilhosa que tinham nem com tratamentos terríveis, nem com a tristeza da despedida antecipada. Dizia que se recusava a tentar parar o rumo da vida, que para ela, chegaria rapidamente à morte. Mas isso era em sonho e Roberto não se conformava.
Passados meses, um amigo preocupado o procurou. Aconselhou-o a doar as roupas, arrumar seu quarto, reorganizar a vida. Apesar da resistência inicial, aceitou. Com mais tato ainda, o amigo sugeriu que Roberto procurasse um laboratório e fizesse exames, poderia estar infectado também...
Roberto prometeu resolver ambos os assuntos e encerrou a conversa.
Cumpriu o prometido de entregar as roupas em uma igreja. Arrumou o quarto. Lavou as próprias roupas e mesmo sem chão conseguiu viver. Porém, decidiu não fazer o exame. Se Joana não contara é porque não precisava saber.
Com todas as resoluções tomadas, Roberto vendou a casa que trazia tão boas lembranças e foi morar em outro estado. Levou apenas uma caixa de lembranças de Joana e seus pertences. Na nova cidade, se refez e passou toda a vida, até morrer gordo e velho.
Os parentes próximos foram tratar de se desfazer das roupas e outras quinquilharias do defunto como fazem todos os parentes. E em uma caixa encontram uma foto de Roberto e Joana. A última foto que tiraram juntos, da qual Roberto jamais se separou.
No verso da foto estes dizeres: Não me puna pelos meus segredos, eles me matarão, mas jamais deixarei que atinjam a ti.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Livros me dão náusea 10
Poesia completa do Cruz e Sousa e A mão e a luva (Machado de Assis). Demorando pra pôr a leitura em dia por muios motivos. O principal, a preguiça.
quinta-feira, 11 de junho de 2009
segunda-feira, 1 de junho de 2009
domingo, 31 de maio de 2009
Livros me dão náusea 9
quinta-feira, 30 de abril de 2009
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domingo, 26 de abril de 2009
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Livros me dão náusea 6
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terça-feira, 21 de abril de 2009
Sem você (parte 3)
Não foi à aula seguinte. Por isso, recebeu um telefonema de Rosana.
- Marina, senti sua falta na aula hoje.
- Acordei passando muito mal, professora.
- Já está melhor?
- Já.
- Olha, estou ligando também para dizer que sua resenha recebeu nota dez. Se houvesse nota maior do que dez, ela mereceria.
- Muito obrigada, gostei muito de ter feito esse trabalho. Amei os livros.
- Que bom. Não queria que perdêssemos o contato com o final do semestre...
A música tocou de novo romântica e brega.
Marina foi às últimas aulas com novo entusiasmo. Almoçou com Rosana nesses dias. A professora contou a ela sobre sua última viagem à Europa. Falaram muito sobre como não gostavam de poesia e de música americana. Na saída, Marina percebeu que Rosana, embora não morasse longe de sua casa, nunca oferecera carona. Pensou: de repente não ia para casa, poderia trabalhar em outro lugar à tarde.
Pegou seu ônibus e foi com a música longe.
Na primeira semana de férias sentiu saudade. Quis reler os livros que ganhara de Rosana. Quis relembrar as conversas. Quis revê-la.
Na segunda semana, o telefone tocou. Rosana convidou Marina para um jantar em sua casa. “Confraternização de final de ano”. Pegou um táxi e chegou ao apartamento. Teve aquela sensação de ser a primeira a chegar. A sala vazia, mas a mesa posta. Rosana logo percebeu o estranhamento de Marina e explicou: ela era a única convidada.
Marina assumiu para si mesma que seu desejo se havia realizado.
- Marina, você sabe por que eu nunca te ofereci carona na saída da faculdade?
- Não. Achei que você tivesse outro compromisso depois da aula.
- Não. É porque é antiético que professoras se relacionem com alunas ou alunos. Mas você não é mais minha aluna.
- Mas nós continuaremos lá. Não vou fazer sua disciplina, mas você continua professora e eu aluna.
- Eu saí de lá, Marina. Consegui um outro trabalho para o ano que vem.
A música tocou.
“I can’t liiiive, if living is without you...”
Sem você (parte 2)
espero que a leitura te proporcione não só um ótimo trabalho, mas que ela te engrandeça como estudante e pessoa. E que, no fim das contas, te deixe uma lembrança minha. Os livros são seus. Não conte aos colegas!
Com carinho,
Rosana.
A música soou forte, os tambores sobressaíram. Não, o coração. Então os cinco livros eram presente. Um presente muito generoso. Marina sabia que ficaria sem graça ao encontrá-la na próxima aula e o mínimo que poderia fazer em retribuição era um trabalho merecedor de nota dez.
Na aula, como imaginara, chegou meio constrangida. Sentou-se mais ao fundo do que o normal. Viu a professora entrando. Muito elegante, como sempre. Dessa vez acompanhada pela música. A tal música antiga que perseguia Marina durante os últimos dias. A professora procurou Marina com o olhar e, dando bom dia à turma, piscou discretamente para ela.
Marina teve um sustinho no coração. Pequeno, logo se recompôs, afinal, elas tinham um segredo, era isso que significava.
Depois da aula foram tomar café com outros colegas. A professora estava mais simpática que o normal. Mais alegre. Marina tinha o costume de só chamá-la por “professora”, mas nesse dia foi advertida para que parasse com esse hábito. Deveria chamá-la pelo nome. E “nada de senhora”! Marina riu, sem graça e feliz. Por alguns segundos, enquanto Rosana conversava com outras pessoas, a música ficou tão alta em sua mente que não conseguia ouvir nem o burburinho dos estudantes na lanchonete.
Antes que saíssem da cantina, a professora disse a Marina que telefonasse para ela, pois estava curiosa por saber como as leituras iam. O número do telefone de Rosana soava a canção antiga. Romântica, brega e linda.
Deixou o telefone sobre a escrivaninha e tentou esquecê-lo por enquanto. Melhor ligar no meio da tarde. Não, melhor ligar antes do jantar. Não, depois do jantar. Eram quase dez da noite quando Marina criou coragem e pegou o telefone. Sem saber, Rosana estava sentada em seu sofá tentando ler, mas esperando o telefonema.
Atendeu ao primeiro toque com alô sorridente. Parecia linda em sua voz. Parecia estar de camisola. Marina demorou alguns segundos para entender a pergunta: “E aí, o que está achando dos livros?”. Conseguiu responder, e falar muitas coisas. Já havia terminado de ler todos e falou sobre todos, e acabaram-se os livros para falar e começaram a conversar sobre outras coisas. Muitas. Até duas horas da manhã, quando, pelo bom senso, acharam que deviam se despedir.
A música não deixou Marina dormir. Rosana, sim, dormiu maravilhosamente.
O outro dia era sábado. Marina escreveria seu trabalho. Escreveu uma, mil vezes o nome de Rosana no caderno e nada de resenha. Sábado passou. Domingo de casa agitada, almoço, essas coisas de quem tem família. Marina pediu que não fosse incomodada. Trancou-se no quarto e conseguiu fazer uma excelente resenha.
Quando chegou à faculdade, animada com o trabalho que tinha feito, Marina se viu ao redor dos amigos planejando férias. De fato, seriam os últimos trabalhos do semestre. Em poucas semanas Marina não estaria frequentando as aulas de literatura. A música soou melancólica dessa vez.
Sem você (parte 1)
Nesse dia, foi proposto um trabalho sobre literatura brasileira contemporânea. Deveriam fazer resenha de um livro de ficção ao gosto de cada um. Gosto esse também avaliado. Claro, pois a escolha deveria ser crítica e consciente. Há tantas porcarias no mercado editorial.
No mesmo dia, antes de ir para casa, Marina passou na livraria e viu alguns títulos. Leu, releu contracapa e orelhas, mas não se decidiu. Afinal, livros são caros demais, não poderia comprar vários.. No máximo compraria dois, mas a decisão seria difícil.
Na aula seguinte, esperou a saída e consultou a professora sobre os títulos pelos quais havia se interessado. Ela era uma mulher imponente, alta, com voz forte. Dava até um certo medo. Mas em contraste, possuía uma doçura rara e grande acessibilidade aos alunos.
A professora aprovou os livros, porém disse que não se apressasse, pois outros livros bons estavam sendo publicados e não chegavam às grandes livrarias. Sabendo que Marina era aluna muito interessada, a convidou para o almoço para conversarem melhor.
Foram a um dos restaurantes da universidade, o mais caro, aquele onde os professores sempre comiam. Marina ficou sem jeito, tinha pouco dinheiro e ainda estava economizando para os livros. Sem coragem de contar à professora, entrou e se serviu modestamente no buffet.
Evidentemente foi percebida pela professora que não comentou nada – já havia sido aluno e desempregada – pagaria o almoço, mas Marina só saberia na hora de passar no caixa.
A conversa foi bem mais gostosa do que o almoço. E, por fim, a professora ficou de trazer alguns livros de que gostava para emprestar à aluna.
Quando chegou em casa, Marina começou a ouvir em sua mente uma música romântica antiga. Pesquisou mais alguns autores na Internet e a musiquinha tocando ao fundo. Por fim, cismada com a canção, procurou-a a na Internet e ouviu até enjoar.
Como prometido, a professora levou os livros e Marina foi para casa mais cedo para começar logo a leitura. Ao abrir o primeiro volume, a música soou alto em seu cérebro e a leitura foi acompanhada pela melodia.
No segundo livro encontrou um papel. Teve medo de que fosse algo pessoal, mas terminou abrindo. Era um bilhete:
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Livros me dão náusea 5
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Cadê Regina?
É como você disse, Regina, o pai judiou muito deles quando eram crianças, se revoltaram. Eu tenho culpa porque nunca impedi João de bater nos meninos. Dizia que eram homens, tinham que aguentar a dor – embora nunca aguentassem, implorando o fim das pancadas com o rosto lavado de lágrimas – e cada vez mais batia – e cada vez mais as lágrimas eram de ódio.
Sabe, Regina, ter só homens em casa às vezes é um desgosto. Não tive uma menina para me ajudar a por ordem na casa. Pelo menos que lavasse a louça no fim de semana e ajudasse os irmãos na lição. Que nem a sua. Menina é mais inteligente, tira nota boa na escola – ela mesma repetira o segundo ano três vezes e largara a escola. Tive três meninos, cada qual mais grosso e violento. Culpa do pai. Ainda bem que me respeitam – não me batem, quis dizer – porque se me agredissem, não sei o que faria.
Ah, Regina, tão bom conversar com você. Você sabe o quanto sofro. Esse corre-corre. Já estamos chegando. Vou dar o sinal para descermos. Vem, Regina, Essa hora ônibus sempre lotado – em pensar que iria para cada mais tarde retomar a rotina de insultos, cobranças e gritaria... Regina, desce, Regina. Ué, cadê, Regina? Moço, minha amiga Regina está descendo, espera um pouco. Tem mais ninguém em pé para descer não, senhora. Tem alguma Regina, aí? Tem ninguém com esse nome aqui. Regina? Reg...
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Biografia
As pequenas tramas da vida são os adjuntos adnominais. Sem elas, somos nós, sim, uma identidade, mas nenhum determinante. Sem elas, não sabemos se foi belo ou feio, se foi alegre ou triste. Sem elas as coisas apenas seriam. Nascer, crescer, se reproduzir, morrer.
As pequenas tramas da vida fazem com que a morte se torne um evento triste. Porque ver morrer que te ensinou a amarrar o cadarço, ou a pessoa com quem você andou de ônibus pela primeira vez. Ou quem te deu nota zero na escola. Ver morrer essas pessoas é a maior tragédia da vida.
As pequenas tramas da vida fazem com que um beijo não seja só o ensejo da relação sexual. Seja o momento mais esperado, mais aguardado e almejado de uma existência. Um simples tocar de bocas que não nasce da simples vontade. Necessita de alguém que seja o alguém, que tenham que te apresente esse alguém, que corresponda a você. É preciso ser o alguém de um alguém.
As pequenas tramas da vida nos fazem comprar livros e guardar flores secas dentro deles. Nos fazem dá-los de presente. Nos fazem filosofar à toa. Nos fazem biografar.
domingo, 12 de abril de 2009
O dragão comilão
Com o tempo entendi a metáfora do dragão comilão ter sido nosso primeiro livro na vida alfabetizada. Nós éramos os dragões. Eu fui o dragão. Segui à risca, desde a primeira vez que o li. Passei a deglutir todas as palavras. A mesma dificuldade que senti quando tive de escrever a historinha no final, sinto hoje. O livro tinha me contaminado e era difícil não repeti-lo.
A diferença é que hoje, após centenas de livros lidos, tenho um repertório maior. Mas nunca, nem uma vez nessa vida, consegui escrever sem repetir as histórias dos livros da minha vida.
sábado, 11 de abril de 2009
Livros me dão náusea 4
Semana Santa
Saiu na hora de sempre e pegou o ônibus para o trabalho. A condução, já cheia, iria em pé, estava acostumada. Mas naquele dia, algo diferente: um rapaz levantou-se para lhe ceder o lugar. Luana tentou recusar, mas no final sentou e como poucas vezes havia acontecido, chegou ao trabalho descansada.
No trabalho, o dia transcorrera sem sustos, nenhuma cobrança do chefe, colegas simpáticos e mais silenciosos que o comum. Quase não sentiu sono durante o expediente. O dia foi mais agradável do que o esperado.
O dia seguinte não poderia ser tão bom. Mas foi igual ou melhor. Havia lugar no ônibus e a pessoa ao lado não dormiu em seu ombro nem puxou assunto sobre conversão religiosa. Recebeu elogio do chefe e almoçou uma lasanha aos quatro queijos sem a menor culpa. Chegou em casa leve e dormiu muito bem relembrando seu bom dia.
Sua sorte não poderia ser melhor. Saiu de casa temendo um temporal, pois, após dois dias nublados, a chuva cairia certamente. Ao contrário disso, no meio do trajeto as nuvens sumiram e o sol brilhou intenso. Sentiu calor, pois a roupa escolhida era para um dia mais fresco. Por sorte, era dia de liquidação nas lojas e a caminho do trabalho comprou um vestido lindo pela metade do preço. Passou o dia recebendo elogios pela bela roupa.
Ah, a generosidade da vida causa desconfianças. Mesmo após três ótimos dias, ainda não conseguira relaxar pensando nas compensações negativas que viriam. Preparou-se para a reunião de quinta-feira. Não poderia evitar o estresse. Foi munida de muita calma e argumento que nem precisou usar. O chefe viajara e em seu lugar um assessor passou apenas os resultados da semana elogiando a equipe e encerrando a sessão mais cedo.
A esmola é demais. Luana já olhava os rostos simpáticos com um certo medo. Pensou que estava prestes a ser demitida e que, como todos já sabiam, a tratavam bem por remorso. Nunca uma semana havia sido tão boa e produtiva. E como ainda faltava um dia, Luana resolveu tratar de torná-lo perfeito.
Vestiu sua melhor roupa, chegou mais cedo ao trabalho, cumprimentou com entusiasmo a todos os colegas. Teve ideias, trabalhou como nunca. Às 11 da manhã recebeu uma entrega: flores do ex-namorado que se desculpava pelo sumiço e admitia não tê-la esquecido. Ao meio-dia o telefonema de uma grande amiga que estava passando por perto e resolveu convidá-la para o almoço. Às 6 horas o happy hour com os colegas de trabalho. Às 8 horas uma passada pelo mercado para comprar algumas coisas para o fim de semana e, surpresa!, fora sorteada na semana anterior e sem saber era dona de um vale compras no valor de três mil reais.
Chegou em casa cansada de tanta alegria. Descalçou os sapatos, jogou as sacolas pelo chão e deitou no sofá sorrindo de espanto, olhando o teto mal conseguindo pensar. Luana, a mesma de sempre, sem nada demais, nem uma oração sequer, ganhara de presente da vida uma semana formidável. Ficou pensando em tudo que se passara naqueles dias sem acreditar, até que seus olhos se inundaram se sono e os sonhos se misturaram com a realidade...
domingo, 5 de abril de 2009
quarta-feira, 1 de abril de 2009
A noiva tímida
segunda-feira, 16 de março de 2009
Aula de Yoga
A mente se distanciando cada vez mais, tanto que nem sentiram os primeiros estalos. Concentrados em si mesmos, mantiveram o relaxamento, nem mesmo abrindo os olhos em pressentimento de perigo.
O estalo se transformou em estrondo. O chão fugiu do corpo e, para eles, era o estágio exacerbado da yoga. Mas não.
O chão sumiu, as janelas quebraram, os andares superiores desabaram sobre seus corpos em transe. Em segundos, tudo no chão. Menos Felipe e Ana.
Os dois flutuavam sobre os escombros. Colina equilibrada, mente concentrada em si, respiração controlada, olhos fechados, corpos flutuantes.
terça-feira, 10 de março de 2009
Superestiloso
Superestilosa
quarta-feira, 4 de março de 2009
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Centro da cidade
No dia seguinte Eliete viu Ciro entrando em um prédio e pensou que ele deveria trabalhar ali. Na hora do almoço se posicionou estrategicamente forçando o reencontrou que foi muito alegre.
Mais dois dias de encontros, até que chegou o dia de folga de Eliete. Ciro sentiu uma falta imensa de encontrá-la. Esperou o dia seguinte e a convidou para sair. Foram ao pagode, beberam cerveja, descobriram um ao outro. Foram para a casa dele. No dia seguinte Eliete declarou ao marido que estava saindo de casa, pois encontrara outra pessoa.
Ele radiante declarou:
- Que bom, podemos ir trabalhar juntos.
E entraram em seu carro, ela de uniforme laranja e boné; ele de terno e pasta.
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
Doenças contemporâneas (da série enumerativa)
Já sucumbi a algumas dessas doenças, de outras tento fugir. Boa noite e boa sorte.
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Neuro
Procura um neuro, me diziam uns, vai no meu centro, lá eles curam tudo. Isso é encosto. A verdade é que eu não sabia o que fazer com os zumbidos que perturbavam minha mente. Fui ao otorrino e ele não encontrou nada. O mais estranho é que quando chegava ao consultório o chiado parava. Mas voltava assim que enfiasse a chave na porta do carro. Era como uma televisão fora de sintonia, um chiado que parecia querer se converter em som, em algo inteligível. Às vezes pra dormir eu ficava me embalando com aquele leve sussurro que não era de todo ruim. No início sentia como se tivesse entrado uma abelha no meu ouvido, aliás, tive certeza disso, mas depois de exames profundos não se achou nada, nem abelha, nem doença que explicasse o sintoma. Levei pra casa o diagnóstico do mundo moderno: estresse. Com o passar do tempo eu mesma fui apurando o ouvido e o zumbido ia se tornando cada vez mais um sussurro. Aprendi a sintonizar minha tv interna. Aos poucos as vogais foram se formando, e as consoantes mais primárias. Depois meu nome. Um acalento ouvir meu nome naquela voz rouca dentro do meu ouvido. Palavras de amor, canções de ninar, boleros antigos, cada vez mais conseguia entender aquelas palavras com nitidez. Cada vez mais me sentia acompanhada. Agora começa a se formar a imagem da voz na minha mente, ainda com chuviscos, mas logo em alta definição.
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009
Chuva de verão (final)
Elisa estava sentada em um banco, virada em minha direção da cintura para cima. Seu banquinho estava quase todo imerso em um tanque, uma espécie de aquário. Me aproximei e olhei para dentro desse tanque. Vi o brilho prateado de peixe. Olhei nos olhos de Elisa. Emocionados. Dentro da água o brilho cintilou. Elisa moveu a cauda e me deixou ver a ponta.
Maravilhada, olhando em seus olhos, desci o corpo e toquei a água. Senti um espasmo em seus músculos. Toquei com a ponta dos dedos as grossas escamas. Fui abrindo a mão até encostar a palma no duro de escamas que eram as pernas-cauda de Elisa. Comecei a acariciá-la e senti que por dentro estremecia. De medo, de prazer. Segurei a cauda com as duas mãos e tirei da água para ver melhor.
“Lindo”.
Elisa ficou ruborizada. Eu, extasiada. Apertei a cauda contra meu corpo, molhando o já molhado de chuva uniforme da escola. Encostei minha face nela, senti com a pele delicada da bochecha a escama dura, lisa e prateada. Rolei o rosto até encostar a testa e olhei de pertinho aquela madrepérola. Sentia a respiração suspensa de Elisa, a minha também estava assim.
“Minha mãe pode chegar, Lara. Não sei o que ela faz se descobrir que alguém sabe do meu segredo”.
Apertei mais uma vez seu rabo contra meu corpo e beijei-o. Mergulhei de volta na água e saí correndo. A chuva passara.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
Chuva de verão (2ª parte)
Insistia e ela não deixava, por nada nesse mundo, que eu a visse por inteiro. Só do peito para cima.
Como era fim de ano, o verão já estava ardendo e o tempo de chuvas chegava. Numa sexta-feira, quando ia subindo sua rua, um temporal se armou. Em poucos segundos a tempestade caiu sobre mim. De sua janela Elisa já me via, molhada correndo. O vendaval me impedia de enxergar, e os raios que clareavam tudo em volta me apavoravam. Corri rumo a casa de Elisa e quando me aproximei da janela ela disse “entre, a porta está aberta”.
Entrei correndo e já falando:
“Nossa, que chuva, de repente. Senti tanto medo”.
“Vou pedir à Rita que traga uma toalha”.Somente quando ouvi a voz de Elisa me dei conta de que estava dentro de sua casa. Desembacei os olhos e vi o que ela não deixava que ninguém visse.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
Chuva de verão (1ª Parte)
“Oi, tudo bem? Você sempre fica na janela, não é?”
“É” – respondeu tímida.
“Meu nome é Elisa, e o seu?”
“O meu é Lara”.
“Muito prazer, Lara. Mas por que você fica sempre na janela?”
“Porque eu gosto de ver o movimento, as outras meninas indo à escola”.
“E por que não sai pra conversar?”
“Não posso, minha mãe não deixa”.
“Que pena, então sempre que puder passarei aqui pra conversarmos”.
E assim eu fiz, parei na janela todos os dias. De início, tínhamos conversas rápidas, depois passei a sair de casa uma hora antes para conversar com Elisa. Seus cabelos eram negros e compridos, os olhos bem fundos e a pele, apesar de morena, estava desbotava porque o máximo de sol que recebia era ali na janela.
“Você vai à escola de manhã, Elisa?”
“Não.”
“Então, que horas?”
“Eu estudo em casa com minha mãe.”
“É mesmo? Seria tão bom se estudasse na minha escola.”
“Em que série você está?”
“Na quinta.”
“Eu também! Quer dizer, se estivesse na escola estaria na quinta série.”
“Por que não pede à sua mãe pra te matricular na escola.”
“Não posso, não posso sair de casa mesmo.”
“O que houve.”
“Nada, meus pais não deixam.”
“Deixa eu falar com a sua mãe. Vou entrar aí, chama ela.”
“Não, Lara! Não, minha mãe foi trabalhar, eu estou sozinha... com a empregada.”
“Que pena, de repente se eu conversasse com ela, falasse que a escola é muito boa. Ela podia até conversar com a minha mãe, que tal?”
Elisa disse que seria ótimo, mas seu rosto ficou muito triste.
Livros me dão náuseas 3
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Declaração de amor
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
Amélia e João Carlos
Aos poucos o amor dos primeiros tempos se transformou em amor maternal de Amélia para com João Carlos. Ele a amava como a uma mãe, fazia malcriação, competia com os filhos por sua atenção. E ela adorava cortar suas unhas, comprar suas roupas, consertá-las, acompanhá-lo nas consultas médicas.
Aos poucos o amor foi mudando, os dois já sem filhos dependiam mutuamente. Amavam-se por ser a única atividade que restara. Já não sabiam como se comportar sem a companhia do outro.
Aos poucos o amor foi mudando e o medo de perder ia se tornando cada vez mais forte. Apegavam-se um ao outro a um corrimão. Amavam-se com desespero dos últimos dias.
Até que João Carlos morreu de enfarte, pouco sofreu. Em compensação Amélia sofreu silenciosamente, como só o sofrimento mais fundo permite.
Sentada na entrada da capela esperava chegar o caixão do marido, sem acreditar que dali em diante não dividiria mais as cebolas e as revistas com João. O carro funerário vinha chegando e sem forças para levantar esperou que abrissem a porta do carro e retirasse o caixão.
Na posição em que estava não viu a caixa de mogno vindo em sua direção, pois estava de costas. Sentiu apenas uma batida contra sua nuca e o baque da testa no chão.
domingo, 1 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
Blues cool ou Hoje eu quero ser cool
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
A casa do lado (parte 3)
Quando pisquei de novo já era dia, eu dormi na cadeira da varanda e o primo de Clara no chão. Minha mãe saiu da casa correndo, com a cara apavorada, por um momento pensei que ela soubesse o que acontecera com Clara. Ela se assustou ao ver o menino dormindo no chão e começou a pedir explicações enquanto nos levava pra dentro de casa.
Clara estava desaparecida e eu sabia o que tinha acontecido. Mas aparentemente, pelo menos para os adultos, o desaparecimento da menina em nada tinha a ver com a invasão à casa dos vizinhos na noite anterior. Soube que a polícia entrara na casa ao lado e revistara tudo. Lá apenas dois casais de idosos vivendo sob os cuidados dos filhos. No depósito dos fundos, nada além de velharia. As comidas velhas e estragadas foram jogadas fora e um policial ainda os aconselhou a tomar cuidado, pois a vizinhança estava cada vez mais perigosa.
Triste pelo desaparecimento de Clara e com medo de que o mesmo pudesse acontecer comigo, minha família resolveu se mudar. Sai de casa um pouco aliviada. Dentro do carro olhei pela última vez a casa ao lado. Na janela do último andar vi a velhinha com uma lata de biscoitos no colo, segurando a coleira de um imenso cachorro.
A casa do lado (parte 2)
Durante as férias, Clara recebeu seu primo em casa. Ele logo se juntou ao curioso grupo que iam todos os dias espionar os vizinhos. Ainda sem o pavor que o resto de nós sentia, insistiu em pular o muro pra procurar o cachorro que tinha na casa, pois naquele dia os latidos não paravam e continuávamos sem ver nada.
Eu, muito medrosa, pedi que ele não fosse, e nem quis olhar quando subiu no muro e pulou para o outro lado. Meus joelhos tremiam tanto que precisei sentar no batente da varanda pra disfarçar. Menos de cinco minutos depois o menino voltou, esbaforido, com o rosto iluminado!
Ele andara em volta da casa, ninguém o notou. Foi até os fundos e tentou ver algo pela fresta da porta do quartinho. Viu muito pouco, mas com certeza não tinha cachorro. Parecia mesmo um depósito com várias caixas e prateleiras com coisas empilhadas. A aventura só serviu pra atiçar ainda mais a curiosidade das crianças e o meu pavor que nem por um momento diminuiu. Só aumentou, tanto que fiz xixi nas calças. E entrei correndo em casa, chorando de vergonha.
Soube depois por Clara que o primo entraria de novo lá à noite com grampos e arames pra tentar abrir o cadeado do depósito. Ela planejava ir junto. Tentei convencê-la a desistir, mas quanto mais eu argumentava mais ela se enchia de coragem. No fim cedi e disse a minha mãe que ela dormiria lá em casa. Assim, levantamos durante a noite e abrimos a porta para o primo dela que estava paramentado pra descobrir mais coisas essa vez.
O menino pulou o muro primeiro e eu ajudei Clara e subir. Fiquei olhando os dois darem a volta pela frente da casa. Nenhum morador apareceu. Nem cachorro. Chegaram à porta do quartinho e começaram a enfiar grampos e pedacinhos de arame retorcido até que, me dando sinal de positivo, o cadeado se abriu e os dois entraram. Demoraram pouco tempo lá dentro e eu já estava com vontade de vomitar de tanto medo. O primo de Clara veio correndo até o muro, onde eu estava, e me chamou pra ia lá ver. Era um depósito de comidas, enlatados de vários tipos, muito velhos e empoeirados. Comida de cachorro, pedaços de tecido enrolados em tábuas. Garrafas cheias e vazias. Criei coragem e pulei o muro
A casa do lado (parte 1)
A casa era quase igual a minha. Morava naqueles conjuntos habitacionais antigos, em que as casas, antes iguaizinhas, já tinham sido modificadas. Essa era ainda bem parecida, com um andar a mais e um quarto separado nos fundos. Esse quarto, víamos de longe, não tinha janelas, apenas uma porta de madeira e com grade por fora. Parecia depósito de alguma coisa.
Havia movimento na parte interna da casa, víamos pessoas lá dentro, homens e mulheres quando abriam as cortinas. Adultos e idosos. O estranho é que eles nunca saiam. Esse era o mistério da casa. De onde tiravam comida se não iam ao mercado? Ninguém ia ao médico, nem saía de férias. Também não havia horta ou animais de que pudessem se alimentar.
Às vezes ouvíamos som de muitas conversas na casa, como uma festa, mas sem alegria. Eu, meus irmãos, minhas amigas da rua sempre espiávamos a casa pelo muro. Mesmo compartilhando o muro, meus pais não conheciam os vizinhos. Devem ser muito velhos e não podem mais sair de casa, somos novos aqui, por isso não os conhecemos, dizia meu pai. Embora já morássemos lá há 10 anos. E eu vi, havia pessoas jovens lá também. Pela janela eu enxergava uma mulher se cabelos compridos, dois homens baixos aparentando menos de 40 anos. Eles se movimentavam muito pela casa, passavam uns pelos outros sem nada dizer. Pareciam em um trabalho incessante.
Ouvia-se latido de cachorro e uivos, mas nunca vimos o bicho. Parecia que, como os outros moradores, ele vivia confinado na casa. Pensamos que poderia morar naquele quartinho dos fundos. Mas já haveria morrido, pois ninguém nunca ia até lá alimentá-lo.
E tinha os velhos, quatro velhos, dois casais. Uma das mulheres idosas ficava na janela do último andar olhando a rua, mas o vidro permanecia fechado. Mesmo quando chovia muito, com raios e trovões, mesmo quando saíamos ainda na madrugada de viagem à praia, a víamos na janela. Ela nunca dirigia o olhar.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
Os dias caros
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Choro
Dor de cotovelo
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Evon e suas cópias
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Ítens críticos
Mulher/homem com criança: Danininho, biscoito Passatempo, Fandangos, leite, guaraná.
Homem sozinho: Pão, queijo (fatiado), presunto (fatiado), caixa de pizza congelada, caixa de lasanha congelada, coca-cola normal.
Homem sozinho versão academia: Bandeja de bife, peça de carne, ovos, banana, pão integral.
Mulher sozinha: Pão integral, peça de queijo branco, pacote de penne, molho de tomate, coca-cola zero.
Questão existencial
sábado, 17 de janeiro de 2009
Primeiro emprego (2ª parte)
Caminhou pela rua da terra até chegar ao bar. Parou no balcão e ficou olhando o movimento, encontrou Jorge, um conhecido da escola. Já tinha dezoito anos e agora quase ninguém falava com ele. Com Jorge ainda falava, era uma pessoa boa, terminara a escola e agora fazia curso de computador.Jorge, eu quero largar a escola. Não larga, falta pouco, você só repetiu dois anos. Não agüento mais entrar lá. Por que você não faz o supletivo? É? Curso a distância só vai lá fazer a prova. Não tem que ir à aula? Só às vezes. Jorge, como sempre na minha vida. Não exagera. Jorge ainda ficava tímido... Como estava de passagem, foi embora deixando-o no bar, feliz, renovado.Do balcão percebeu que era olhado por um homem parado em frente à sinuca. O tal homem se dirigiu, devagar na sua direção. Não sentiu vontade de sair dali, nem de desviar o olhar, deixou que se aproximasse.Oi garoto. Oi. Qual é a sua idade? Dezoito. Já pode beber. Uma cerveja aqui pro rapaz. Precisa não moço. Deixe disso.À meia-noite voltou para casa com duas notas de vinte no bolso. Até que ter dinheiro era bom.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Itens de filme de terror
quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
Primeiro emprego (1ª parte)
Julia rima com o quê? “O quê” rima com porquê. Quando a gente escreve poesia tem que rimar, mamãe? Acho que tem, pergunta ao seu pai. Cadê papai? Trabalhando.Papai trabalhou muito naquele dia, tanto que não voltou. Depois eu aprendi que poema podia ter rima ou não e que poesia era o gênero. Fulano escreve poesia. Esse poema de fulano é uma porcaria. Hoje eu sei.Cláudia não fazia poesia, nem porcaria, mas era uma coisa bonita e triste.Fomos juntas ao salão pela última vez. Eu fiz luzes, ela uma hidratação e escova. Já estava com os cabelos pela cintura, naturais. Também não teve pai. Aonde vão os pais? Eles somem, deve haver um paraíso tropical onde eles se exilam. E ficam lá, bebendo piña colada, assistindo aos campeonatos de futebol de todos os países.Fazia anos que Cláudia e eu freqüentávamos o mesmo salão. Meu cabelo já havia sido de todas as cores. Mas ela não. Mamãe, preciso trabalhar, a senhora já está doente de novo. Meu filho, eu ainda tenho força, sou nova pra trabalhar em casa de família. É nova, mas está doente. Quero que fique em casa, mamãe. Já estava na hora, dezoito anos, podia ir para a rua, fazer a vida. Ou quem sabe, Julia daria uma força.Preciso de dinheiro, Julia, lá no seu escritório não tem trabalho pra mim? Agora não tem vaga nenhuma, acabaram de contratar três funcionários, mas faz um currículo que eu levo. Que currículo, amiga, eu não tenho nada, nem terminei o segundo grau, e que sacrifício está sendo.A casa onde nascera foi construída pelo avô na ilusão de fazer um casamento para filha. Jamais aconteceu, só uma gravidez. A família estava feita e morava na casa de dois cômodos. Elas foram crescendo ali, se sentindo menos, não querendo mais. Mamãe, não quero ir à escola hoje. Tem que ir meu filho, a escola é o que dá futuro. Que futuro eu tenho? Por que todos me olham? Não pense nos outros, você é só na vida. Eu tenho a senhora. Vamos tomar a sopa. Sempre comíamos com o suor pingando no rosto, salgando a sopa. Mamãe, não quero comer, vou sair.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
A carniça
Ao seu redor podia ver prédios de todos os tamanhos e se apurasse o ouvido o som de buzinas e falatório o invadiria.
Alguns pássaros a circundavam e aquilo dava uma sensação ainda mais agravável à caminhada. A sombra dos pássaros vinha brincar entre os pés de Ana. Mas aqueles pássaros não tinham canto de sabiás e canários, nem eram pardais, nem os pombos urbanos. Ana olhou para cima e viu que eram grandes e estavam cada vez mais baixos, descendo em círculos. Descendo cada vez mais. E chegando muito. Realmente muito perto. Urubus!
- Ai, eu ainda to viva, porra!
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
Livros dão náusea? 2
A festa
Não falava de juventude com essa distância toda, afinal tinha apenas 35 anos. Se sentia na flor dos anos, uma tartaruga que apenas começava a sair por aí.
Além do trânsito, essa quantidade absurda de sinais. Pra quê, meu Deus? Só para atravancar nossa vida, pensava com pressa.
Distraída em um desses sinais atravancadores, ouviu o anúncio do assalto. Passa a bolsa, passa o relógio, passa o anel. A arma a obrigava a passar tudo. O cano chegara a tocar de leve seu braço, pois o assaltante gesticulava com ela. Foi tudo tão rápido que logo veio o alívio. O sinal abriu. Antes de sair com o carro, se olhou de novo no retrovisor. O cordão estava lá, e em seu colo, o batom. Retocou.
domingo, 11 de janeiro de 2009
Primeiro dia de verão
quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
Á moda antiga
Pleonasmo
– Ele está com hemorragia de sangue!
– Quando foi isso, senhora?
– Há um minuto atrás.
– E o que aconteceu?
– Caiu pra baixo, será que teve traumatismo craniano na cabeça?
– Calma dona, quem foi?
– Meu filho, menino macho. Tava só eu e ele, só. Eu pisquei os olhos e ... Entra lá dentro de casa e vê. Tenho medo de ver meu filho um defunto morto!
Juliana
Lá estava, sua boneca e melhor amiga. O nome escolhido foi Juliana. Ficavam deitadas na cama conversando por horas, contavam segredos uma para a outra. Eram mãe e filha, vice-versa. As melhores horas do dia, só não podia levá-la à escola. Não tinha problema, lá falava muito sobre a sua Juliana.
- Filha, se arrume que vamos sair.
- Posso levar Juliana, mãe?
- Hoje não, filha.
A menininha foi triste e ficou amuada na casa da madrinha, sem beber refrigerante nem comer o brigadeiro da festa do priminho.
- Filha, vou te levar ao médico, acho que está doente.
- Posso levar Juliana?
- Médico não é lugar de brinquedos. Ainda mais essa boneca grande.
E mais triste a amuada ficou a menina.
Não gostava de passear, nem ir à lanchonete que tanto gostava se não pudesse levar Juliana.
- Filha, hoje nós vamos á festa da tia Jô.
- Não quero, mamãe. Quero ficar com Juliana.
- Está bem, hoje não te levo, fique brincando.
Uma alegria imensa tomou o peito, todo o corpo da menina. Nem esperou a mãe sair, correu para o quarto. Juliana a esperava na cama. Deitou-se em seu colo e Juliana a pôs para dormir com histórias e cantigas. Assim que a menina adormeceu, Juliana a colocou na prateleira de brinquedos, voltou para a cama e dormiu.
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Gérbera vermelha
Não morreu, de manhã ainda estava bonita e fresca. Assim como ele, no máximo dezenove anos. Assustadoramente dezenove anos. Guardei com ternura a flor no bolso interno do paletó. Desci de escada por puro medo, mas me detive astuto na portaria.
A porta aberta do elevador e ele saindo. “Bom dia”. “Oi”. Saímos juntos em direção ao centro da cidade, talvez ele fosse à faculdade. Eu de terno, suando muito por dentro. O rapaz fez menção de atravessar a rua, eu entraria à direita. “Vou por aqui”. “Tchau”. Se despediu com um beijo na boca e a mão na flor. O rapaz me deu um sorriso, e eu era um homem de terno. Qual o problema, homem de terno? Preconceito meu, mesmo assim achei estranho. Cumprimentei de volta e fiquei quieto esperando o elevador chegar ao térreo. Na volta do trabalho havia uma flor no capacho de casa. Uma flor vermelha que não sabia o nome. Busquei na Internet imagens de flores pra descobrir o nome daquela: gérbera. Não pus na água, larguei em cima da mesa de jantar. Sem desprezo, apenas deixei que ela morresse.
Não morreu, de manhã ainda estava bonita e fresca. Assim como ele, no máximo dezenove anos. Assustadoramente dezenove anos. Guardei com ternura a flor no bolso interno do paletó. Desci de escada por puro medo, mas me detive astuto na portaria.
A porta aberta do elevador e ele saindo. “Bom dia”. “Oi”. Saímos juntos em direção ao centro da cidade, talvez ele fosse à faculdade. Eu de terno, suando muito por dentro. O rapaz fez menção de atravessar a rua, eu entraria á direita. “Vou por aqui”. “Tchau”. Se despediu com um beijo na boca e a mão na flor.
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
Livros dão náusea?
O espelho
Claudia se olhava no espelho oval. Já era noite e não havia muito barulho lá fora, às vezes passos, às vezes latidos. O espelho era tão antigo quanto as paredes daquela casa que também refletiam formando uma moldura negra ao redor da cabeça de Claudia. Eram muitos anos de fumaça impregnada pretejando os tijolos rudes e criando aquele odor tão peculiar a casa.
Se olhava e se via linda. As lentes de contato verdes pareciam naturais. Mas o nariz era bruto demais, quem sabe se um dia ganhasse muito dinheiro pudesse fazer uma plástica para afiná-lo. O vestido estava bom, velho, mas sempre reformado de acordo com a moda. Tudo lhe caía bem.
A fumaça no ambiente começava e se adensar e embaçar o espelho. Claudia passava sua bolsa, muito pequena e quase vazia, pelo vidro e voltava a contemplar sua beleza procurando manchas e espinhas que a maquiagem se recusava a esconder. Mas para quê? Mesmo sem maquiagem sua beleza era superior. No trabalho isso causava muitas brigas, as outras não a queriam por perto roubando todas as atenções. Mas suas amigas, as verdadeiras, diziam: Claudia, você é a mais bonita de nós, um dia vai tirar a sorte grande e encontrar alguém que te leve daqui. Tinha fé nisso.
Um rumor de passos vinha em direção a casa. Aos poucos o som das chinelinhas de couro se aproximava tirando Claudia de dentro de seus pensamentos e fazendo com que se desse conta do calor que fazia ali.
Carlos, Carlos, meu filho, a sopa está pronta, toma um pouco antes de ir trabalhar. Sim mamãe, mas só um pouco. Precisava manter seu corpo enxuto e belo, precisava trabalhar ainda mais para dar uma casa de verdade com um fogão de verdade para sua mãe.
Se pudesse largava tudo e ia embora, mas não podia abandoná-la. Olhava a mãe comendo em sua frente. Agora o espelho refletia o topo das duas cabeças. Já vou mamãe. Vá com Deus, meu filho.
Deu a última olhada do espelho, ajeitou o vestido e saiu bamboleando sobre o salto alto de verniz.
sábado, 3 de janeiro de 2009
Feliz ortografia nova!
O teste
- Vá ser Rainha do Lar.
Ela disse:
- Não, serei atriz.
Em pequena dançava e cantava para os pais e tios, se fantasiava de princesa e desfilava pela sala de estar.
- Cozinhar como minha mãe? Não, eu gosto de comer bem sem precisar entrar na cozinha.
Que orgulho tinha a mãe, sua menina independente, linda, uma princesa de verdade.
*******
Ele disse:
- Será mãe também.
Ela disse:
- Jamais serei mãe, prezo pela a liberdade.
Planejava viagens que contava às primas, convidado-as para irem juntas pela Europa, Miami, México. Lia guia de viagens e revistas de celebridades, todas, uma pilha ao lado da cama.
- Minha filha lê muito, passa horas no quarto com as revistas.
Põe as revistas de lado, abre a porta do armário e dança, tira o vestido e dança em roupas de baixo. Se olha de um lado, de outro, tenta se mirar de costas. Difícil. Quem sabe se tirar fotos...
Passa hidratante, não quer ter estrias. Homens? Nem pensar, nada de perder tempo com esses garotos bobos, tem um futuro para cuidar.
- Mamãe, lasanha no jantar? Já não te disse que não como carboidrato depois das 6 horas? Vou me deitar.
- Narciso, me lembre de passar no sacolão amanhã para comprar umas verduras, a menina não pode comer massa. Ah, Narciso, ela está se cuidando. Ué, para ser artista. Você não sabia que artista não come massa depois das 6 horas? Nas revistas que ela lê diz isso.
******
Ele disse:
- Vá conhecer um homem.
Ela disse:
- Eu o escolherei.
No dia do teste para o comercial saiu de casa cedo acompanhada pela mãe. Calça jeans e camiseta branca como dizem que é adequado para testes. Cabelos soltos e sem maquiagem para mostrar a beleza natural.
A fila já ia longe, muitas meninas de várias formas, idades e tamanhos. Muitas mães também.
- Nossa, minha filha, é tanta gente.
- É mamãe, os teste para comerciais são muito divulgados.
- Mas você é a mais bonita.
- Eu sei, mamãe.
O teste consistia em: ficar parada em frente a uma tapadeira branca, fica de perfil, outro lado. Sorriso. A próxima. Resultado em duas semanas.
********
Ele disse:
- No próximo teste vá de minissaia.
Ela disse:
- Não desistirei nunca.
Muitos testes e pequenos comerciais depois, chega o dia de gravar um videoclipe. Uma cena de festa, com muitas moças e rapazes dançando enquanto o (novo) astro do vídeo canta no palco com suas bailarinas principais.
- O vídeo vai ser um sucesso, vai alavancar a carreira dele.
- E você aparece, filha?
- Apareço, eles mostram a hora em que eu rebolo até o chão.
A mãe tremia de emoção quando o vídeo foi exibido às 5 horas da manhã de uma segunda-feira.
Uma semana depois o telefone toca. É o empresário do tal artista.
- Uma de nossas bailarinas foi selecionada para um reality show, precisamos de uma suplente, você gostaria de fazer o teste?
- Claro, disse sem demonstrar entusiasmo. Desligando o telefone, começou a pular e abraçar a mãe gritando!
Correu para o quarto ensaiar a coreografia.
Com tanto empenho ela passou no teste, recebeu os figurinos. Pequenas casas em que faziam números pequenos, com duas ou três músicas. Sempre esforçadíssima, simpática e alegre, as portas estariam se abrindo para o sonho.
No camarim recebeu elogios do empresário.
- Você sabe cantar?
- Um pouco.
- Vamos fazer uns testes de voz no meu estúdio.
- Sério? Claro!
- Mas não leve sua mãe, essas coisas demoram e você já está bem grandinha, não é?
- É, na verdade eu tenho vinte e cinco anos.
- Vinte e cinco? Parece ter dezoito.
- Eu sei, na verdade eu gostaria que as pessoas não soubessem minha idade verdadeira.
- Sem problemas, linda.
********
Ele disse:
- Mostre a voz, mas não se esqueça de seus outros talentos.
Ela disse:
- É claro que mostrarei.
O estúdio ficava em uma casa muito bonita, tinha até piscina. Antes de começar a trabalhar sugeriu um mergulho, umas bebidas. Tinha biquínis no quarto de hóspedes, era só escolher.
Ela achou o quarto lindo e muitos biquínis de grife. A maioria ficava grande na parte de cima, mas conseguiu um que deu direitinho. Antes de sair, olhou mais uma vez no espelho, respirou fundo e saiu.
Em uma das espreguiçadeiras estava o empresário, de bermuda com um copo de uísque na mão. Ela se sentiu em um seriado americano. Gostava. Mas sabia onde aquilo ia terminar.
- Ficou linda nesse biquíni, mas posso fazer uma sugestão?
- Pode, disse baixinho.
- Você tem seios pequenos, não destacam sua beleza.
- É, a maior parte dos biquínis que eu vi na gaveta eram de tamanhos maiores.
- O que acha de botar uns implantes?
- De silicone?
- É.
- Não tenho dinheiro para isso ainda.
- Eu pago, aliás, te faço um empréstimo. É um investimento na carreira, vai por mim.
Já se sentir linda e poderosa em um sutiã tamanho 42. 42 não, 44. Em uma reunião com a equipe do cantor, o empresário comunicou que a moça seria substituída por umas semanas, pois passaria por uma cirurgia. Ninguém se opôs, é claro. A outra moça já estava devidamente paramentada e não teve inveja.
A semana da cirurgia ela passou na casa do empresário. Primeiro naquele quarto de hóspedes que havia conhecido no primeiro dia, depois no quarto do dono da casa onde havia mais conforto e uma cama enorme. Até agora não havia feito o tal teste de voz, mas para quê?, o investimento que faria valia a voz e todo o resto.
Depois da operação o empresário veio comunicá-la de que a estava desligando do grupo.
- Mas como? Por quê?
- Porque eu tenho vôos mais altos para você, linda. Gravação de um cd, ensaio para revista...
Jogou-se sobre seu empresário, dando um gemido de alegria e de dor porque ainda doía o busto quando apertado. Não conseguiu agradecer com palavras e ele, já acostumando com moças recém operadas, fez de tudo para não machucar ou pressionar os novos seios.
Já linda, totalmente recuperada, fez fotos sensuais para uma revista. A verdadeira estrela, ex-dançarina, empresariada por um grande nome do showbiz. A mãe comprou quinze exemplares e distribuiu pela família.
- Olha, Narciso, nossa menina. Vulgar nada, muito bom gosto. Ela vai sim, logo, logo recebe o convite. Nu artístico, Narciso. Pode se preparar.
Antes da leitura do contrato recebera um outro documento para ler. Estava escrito: positivo para gravidez e negativo para HIV. Alívio. Desespero.
- Mas o ensaio é para daqui a um mês, até lá você vai ter engordado. Vou pedir a revista que fotografe o mais rápido possível.
A revista não podiaria mudar as datas e já tinha outro nome em vista. Tudo bem, pensava ela, gravava seu cd durante a gestação, logo que o bebê nascesse fazia regime, uma lipo e pronto, faria a revista.
********
Ele disse:
- Vá ser Rainha do Lar.
- Linda, pega mais um uísque aqui para mim.
Deixando a babá pegar seu filho no colo foi até o bar e pegou a garrafa fechada. Atrás do balcão havia um espelho. Se olhou como no primeiro dia, mas agora vestida com uma malha de ginástica. Forjou o sorriso e foi servir o empresário e os convidados. Sentou-se junto a eles.
- O que acha dessa menina, amor? Estamos pensando em fazer um teste de vídeo com ela.
- Bonita.
- Muito bonita, só tem dezoito anos.
- Acredita que essa gata aqui tem vinte e seis anos?
- É mesmo?! Não parece. Homem de sorte você, hein?
- Sorte mesmo. Ainda me deu aquele meninão ali e mais tarde, quem sabe, volta à carreira artística.
Olhando-a com carinho fez sinal que entrasse. Ela se dirigiu à cozinha para supervisionar a empregada. Pegou a mamadeira do filho e entregou à babá sentando-se ao seu lado no sofá, de frente para a televisão ligada.