quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

São Silvestre

Saímos ainda na chuva. Não adiantava correr, havia muitos á frente. Um coelho de Alice se aproximou chamando. Mas a velocidade do animal era incrivelmente alta. Sentia minha gordura movimentar ao redor da barriga, entre as pernas e debaixo dos braços. Conseguia avistar o coelho muito longe por conta do chapéu, mas já não ouvia sua voz “corra, corra, você tem que correr”. Mesmo assim corria desejando ser um etíope. Desejando que a chuva caísse morna, porque aquelas gotas geladas incomodavam demais. Pelo contrário, se fizesse sol seria impossível transpor mais alguns metros. Bendita chuva. Benditas pernas. Maldita idéia. Os vultos de ambos os lados: uns passavam como balas, outros faziam gestos, mas ficavam pra trás. Isso causava certa vertigem. Muita vertigem, tanta que parecia cãibra. Era cãibra e vertigem e dor no estômago. As pernas falharam, um baque no chão. Ouvindo muitos passos, uma cavalaria. Abri os olhos. No meu socorro um Lampião, um Bush e um Jesus Cristo preto.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Genética

Alessandro saltou do ônibus e entrou direto na loja em que planejava, há dias, comprar um livro de informática. Do salário de balconista, reservou cinquenta reais e, sempre que passava na livraria especializada, entrava e via o preço esperando uma promoção. O que não aconteceu. Mas estava feliz do mesmo jeito, a faculdade ainda no começo, quem sabe uma profissão.

Foi atendido por Jenifer: ontem vendemos a última unidade, desculpe.

A vendedora percebeu a decepção no rosto de Alessandro. Sem se despedir ou agradecer, dirigiu-se à saída. Mas você pode telefonar na próxima semana, de repente o livro chega. Quer deixar seu número?, eu ligo pra avisar. Alessandro deu o número meio desanimado e pegou o cartão da loja com o nome da vendedora no verso.

Andou um pouco, pensou em gastar o dinheiro, mas desistiu. Entrou no ônibus e foi para casa. Guardou o dinheiro na gaveta junto com o cartão e terminou a semana sem pensar nele.

Alessandro, é a Jenifer da livraria, tudo bem? O livro que você queria chegou, quer que reserve?
Sorte ter guardado o dinheiro. Iria lá na hora do almoço.

Oi, Jenifer, vim comprar o livro.

Sentiu o volume entre as mãos e mostrou à vendedora uma expressão oposta à do primeiro contato. A satisfação do cliente a deixou alegrou. Já tirou a hora do almoço?

Ainda não.

Quer comer alguma coisa aqui perto? Não tenho tempo, tô no meu intervalo, mas...

Vamos, aqui do lado tem salgado com refresco, a gente come rapidinho.

Pôs o livro dentro do guarda-roupa, pois não tinha estante, nem livros pra preenchê-la. Dormiu se lembrando da moça, atenciosa, bonitinha. Pela manhã, arrumando o material da faculdade, encontrou o cartão. Jenifer. E se eu ligar?

Dois dias depois, ligou. Convidou Jenifer para uma pizza. Agora ela estava linda. Blusa colorida, sandália dourada. Alessandro gostava de mulheres enfeitadas. Aquele branco com amarelo da livraria tirava qualquer graça.

Na saída lamentou não morar sozinho, lamentou que ela não morasse sozinha, que nenhum dos dois tivesse carro. Que faltasse dinheiro pro motel. Se não tivesse comprado o livro... também não a conheceria.

Passou a visitá-la na loja todos os dias, às vezes para o almoço, outras vezes a levava até o metrô. Gastava um dinheirão com as passagens extras. Mas estava feliz. Uma ou outra vez conseguia dormir na casa dela, já que sua avó morava longe e às vezes os pais iam dormir com ela. Seguiam manhãs lindas, de sol ou chuva, lindas, com o corpo aliviado.

Conheceu os pais de Jenifer em um churrasco de família. Gente barulhenta, semi-bêbada, que lhe dava tapas fortes demais nas costas. Era bom. Acolhimento. Se sentia à vontade, foi até a cozinha pegar bebidas enquanto Jenifer preparava seus pratos de almoço. Lá conheceu tia Alba.
Você é o namorado da Jenifer. Cuide bem dela, hein. Disse isso dando um abraço quase emocionado. Desvencilhando-se do abraço olhou-o com cuidado. Você lembra muito meu pai, o formato do rosto. Hein, Jenifer, o Alessandro não parece meu pai, seu avô? Depois pega o álbum de família.

Esqueceram-se do álbum. Beberam cerveja, dançaram. Alessandro dormiu na sala. No dia seguinte disse que precisaria voltar para casa cedo, pra não deixar a mãe sozinha. Sentiu um desconforto no olhar da mãe de Jenifer.

Na segunda-feira foi à livraria. Durante a conversa do almoço Jenifer perguntou qual era mesmo o nome da mãe dele. Aparecida, por quê? Minha tia perguntou, ela conhece muita gente, de repente conhece sua mãe.

Voltou pra casa e perguntou à mãe se conhecia uma Alba. Ela negou. A mãe era mais nova, quando nasceu ela tinha quinze anos. Apesar da juventude, Aparecida vivia na lentidão dos dias.
Alessandro dormiu feliz e do mesmo jeito acordou. Saiu cedinho pra ir ao banco ver se tinha recebido o pagamento. Se desse, levaria Jenifer ao motel, ou até mesmo pra passar o fim de semana na praia.

Na saída do trabalho, encontrou a namorada e contou sobre os planos. Os dois com dinheiro poderiam fazer a pequena viagem, muito melhor que motel, ela disse! E mesmo sendo dia de trabalho, ficaram até mais tarde na rua, comendo churrasquinho, planejando a viagem. Quando percebeu o horário correu para casa, mas ficou feliz, sua mãe não o esperava acordada. Que bom, minha mãe está começando a se preocupar menos comigo e mais com ela.

Jenifer também chegara à sua casa que, pelo contrário, estava toda iluminada. Os pais e a tia a esperavam para conversar sobre algo de que ela desconfiava. A luz não se apagou a noite toda. Assim como durante toda a noite não foi acesa na casa de Alessandro.

Pela manhã, Alessandro não sentiu cheiro de café. Abriu a porta do quarto da mãe devagar e viu seu corpo, um pingente no ventilador de teto. Enforcada com o varal de náilon. Deu passos pra trás até cair no sofá. Nesse momento o interfone tocou. Era Jenifer. Desceu correndo, na mão da namorada, dois bilhetes para o Guarujá. Lembrou-se do livro e da mãe, mas o ônibus partiria em meia hora.