terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Centro da cidade

Eliete e Ciro se esbarraram na rua. Ele, muito educado, perguntou com gentileza se a tinha machucado. De fato, no esbarrão o queixo de Ciro batera contra a face de Eliete. A levou até um bar e pediu gelo para evitar o inchaço.

No dia seguinte Eliete viu Ciro entrando em um prédio e pensou que ele deveria trabalhar ali. Na hora do almoço se posicionou estrategicamente forçando o reencontrou que foi muito alegre.

Mais dois dias de encontros, até que chegou o dia de folga de Eliete. Ciro sentiu uma falta imensa de encontrá-la. Esperou o dia seguinte e a convidou para sair. Foram ao pagode, beberam cerveja, descobriram um ao outro. Foram para a casa dele. No dia seguinte Eliete declarou ao marido que estava saindo de casa, pois encontrara outra pessoa.
Ele radiante declarou:
- Que bom, podemos ir trabalhar juntos.
E entraram em seu carro, ela de uniforme laranja e boné; ele de terno e pasta.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Doenças contemporâneas (da série enumerativa)

Câncer, estresse, lipoaspiração, dieta da proteína, ansiedade, carro, internet, silicone, avc, dda, tdah, fast food, celebridades, self service, rinoplastia, reality show, anorexia, tráfico de drogas, obesidade, botas de cano alto, enfarte, música eletrônica.

Já sucumbi a algumas dessas doenças, de outras tento fugir. Boa noite e boa sorte.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Neuro

Procura um neuro, me diziam uns, vai no meu centro, lá eles curam tudo. Isso é encosto. A verdade é que eu não sabia o que fazer com os zumbidos que perturbavam minha mente. Fui ao otorrino e ele não encontrou nada. O mais estranho é que quando chegava ao consultório o chiado parava. Mas voltava assim que enfiasse a chave na porta do carro. Era como uma televisão fora de sintonia, um chiado que parecia querer se converter em som, em algo inteligível. Às vezes pra dormir eu ficava me embalando com aquele leve sussurro que não era de todo ruim. No início sentia como se tivesse entrado uma abelha no meu ouvido, aliás, tive certeza disso, mas depois de exames profundos não se achou nada, nem abelha, nem doença que explicasse o sintoma. Levei pra casa o diagnóstico do mundo moderno: estresse. Com o passar do tempo eu mesma fui apurando o ouvido e o zumbido ia se tornando cada vez mais um sussurro. Aprendi a sintonizar minha tv interna. Aos poucos as vogais foram se formando, e as consoantes mais primárias. Depois meu nome. Um acalento ouvir meu nome naquela voz rouca dentro do meu ouvido. Palavras de amor, canções de ninar, boleros antigos, cada vez mais conseguia entender aquelas palavras com nitidez. Cada vez mais me sentia acompanhada. Agora começa a se formar a imagem da voz na minha mente, ainda com chuviscos, mas logo em alta definição.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Chuva de verão (final)

Fui me aproximando, vi seu rosto assustado-envergonhado. Tentando se encolher quando não havia como.
Elisa estava sentada em um banco, virada em minha direção da cintura para cima. Seu banquinho estava quase todo imerso em um tanque, uma espécie de aquário. Me aproximei e olhei para dentro desse tanque. Vi o brilho prateado de peixe. Olhei nos olhos de Elisa. Emocionados. Dentro da água o brilho cintilou. Elisa moveu a cauda e me deixou ver a ponta.
Maravilhada, olhando em seus olhos, desci o corpo e toquei a água. Senti um espasmo em seus músculos. Toquei com a ponta dos dedos as grossas escamas. Fui abrindo a mão até encostar a palma no duro de escamas que eram as pernas-cauda de Elisa. Comecei a acariciá-la e senti que por dentro estremecia. De medo, de prazer. Segurei a cauda com as duas mãos e tirei da água para ver melhor.
“Lindo”.
Elisa ficou ruborizada. Eu, extasiada. Apertei a cauda contra meu corpo, molhando o já molhado de chuva uniforme da escola. Encostei minha face nela, senti com a pele delicada da bochecha a escama dura, lisa e prateada. Rolei o rosto até encostar a testa e olhei de pertinho aquela madrepérola. Sentia a respiração suspensa de Elisa, a minha também estava assim.
“Minha mãe pode chegar, Lara. Não sei o que ela faz se descobrir que alguém sabe do meu segredo”.
Apertei mais uma vez seu rabo contra meu corpo e beijei-o. Mergulhei de volta na água e saí correndo. A chuva passara.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Chuva de verão (2ª parte)

Já estávamos nos últimos dias de aula, quase sempre eu perguntava o real motivo para ela não sair de casa. Ela disse que tinha uma doença que a impedia de ir à rua. Não disse exatamente o que era. Pedi para ver, porque eu não tinha medo, nem nojo, nem pena. Eu gostava tanto de Elisa que ficaria em casa com ela, fazendo companhia enquanto sua mãe trabalhava.
Insistia e ela não deixava, por nada nesse mundo, que eu a visse por inteiro. Só do peito para cima.
Como era fim de ano, o verão já estava ardendo e o tempo de chuvas chegava. Numa sexta-feira, quando ia subindo sua rua, um temporal se armou. Em poucos segundos a tempestade caiu sobre mim. De sua janela Elisa já me via, molhada correndo. O vendaval me impedia de enxergar, e os raios que clareavam tudo em volta me apavoravam. Corri rumo a casa de Elisa e quando me aproximei da janela ela disse “entre, a porta está aberta”.
Entrei correndo e já falando:
“Nossa, que chuva, de repente. Senti tanto medo”.
“Vou pedir à Rita que traga uma toalha”.Somente quando ouvi a voz de Elisa me dei conta de que estava dentro de sua casa. Desembacei os olhos e vi o que ela não deixava que ninguém visse.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Chuva de verão (1ª Parte)

Passava sempre em frente à sua janela na ida para a escola. Notei que todos os dias a mesma menina estava lá. Passei a cumprimentá-la, já que a via sempre e seu rosto se tornou familiar. Quando disse “oi” pela primeira vez seu sorriso se iluminou de tal forma que até me assustei. Com o passar dos dias fiquei curiosa “por que essa menina não sai da janela?”. Resolvi sair de casa mais cedo para puxar assunto.
“Oi, tudo bem? Você sempre fica na janela, não é?”
“É” – respondeu tímida.
“Meu nome é Elisa, e o seu?”
“O meu é Lara”.
“Muito prazer, Lara. Mas por que você fica sempre na janela?”
“Porque eu gosto de ver o movimento, as outras meninas indo à escola”.
“E por que não sai pra conversar?”
“Não posso, minha mãe não deixa”.
“Que pena, então sempre que puder passarei aqui pra conversarmos”.
E assim eu fiz, parei na janela todos os dias. De início, tínhamos conversas rápidas, depois passei a sair de casa uma hora antes para conversar com Elisa. Seus cabelos eram negros e compridos, os olhos bem fundos e a pele, apesar de morena, estava desbotava porque o máximo de sol que recebia era ali na janela.
“Você vai à escola de manhã, Elisa?”
“Não.”
“Então, que horas?”
“Eu estudo em casa com minha mãe.”
“É mesmo? Seria tão bom se estudasse na minha escola.”
“Em que série você está?”
“Na quinta.”
“Eu também! Quer dizer, se estivesse na escola estaria na quinta série.”
“Por que não pede à sua mãe pra te matricular na escola.”
“Não posso, não posso sair de casa mesmo.”
“O que houve.”
“Nada, meus pais não deixam.”
“Deixa eu falar com a sua mãe. Vou entrar aí, chama ela.”
“Não, Lara! Não, minha mãe foi trabalhar, eu estou sozinha... com a empregada.”
“Que pena, de repente se eu conversasse com ela, falasse que a escola é muito boa. Ela podia até conversar com a minha mãe, que tal?”
Elisa disse que seria ótimo, mas seu rosto ficou muito triste.

Livros me dão náuseas 3

É gente, muito difícil essa vida de leitora. Me apego duma forma a certos livros... Estou na página 670 de Anna Kariênina, mas já sinto sua falta. Pra compensar a carência comecei As meninas (Lygia Fagundes Telles). Provavelmente diminuirei meu ritmo de leituras de ficção por motivo de estudos. Não sei ainda... tenho uma pilha de livros pra por em dia e eu leio devagar. Porque, como já disse, tenho uma relação esquisita com os livros. Às vezes me afeto demais, me dá ansiedade, melancolia e isso ver por outra atrapalha. Ok, é desculpa, eu que sou lerda mesmo.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Declaração de amor

Cortei o cabelo, comprei novos discos. Pensei “eu não sei mais nada sobre mim, assim vou dormir tranquila”. Costumava ser bom. Os passeios, o sexo, a comida, o cheiro da casa. Por isso mudei, cortei o cabelo, vendi os livros. Pus roupas em uma mala, tirei roupas do meu corpo, tomei banho, depilei. Costumava ser bom dormir a noite toda e também ter insônia com você por perto, as melhores noites mal dormidas. Mas penso: “eu não sei mais o que são noites mal dormidas, eram maravilhosas”. Resolvi desistir das milhas que nos separam. Desisti do coração partido. Está no fim. O último pó no último filtro, é só beber o café, trancar a casa, deixar as chaves com o porteiro. Já sonhei: te encontrarei após atravessar uma ponte, você quase desistirá de vir ao meu encontro achando que é apenas uma sósia, afinal estou do outro lado do mundo, mas eu chamarei seu nome, e essa será a maior declaração de amor.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Amélia e João Carlos

Amélia e João Carlos eram casados há 48 anos. Já não se amavam com o amor dos primeiros tempos. Naqueles tempos em que descobriram que ser um casal era mais do que comer pipoca na praça e conversar no portão de casa. Amélia aprendeu a cortar as cebolas bem pequenininhas porque seu marido não gostava de mastigá-las. João aprendeu a comprar uma revista de modas aos domingo junto com o jornal. Aprenderam a fazer filhos bons e saudáveis.

Aos poucos o amor dos primeiros tempos se transformou em amor maternal de Amélia para com João Carlos. Ele a amava como a uma mãe, fazia malcriação, competia com os filhos por sua atenção. E ela adorava cortar suas unhas, comprar suas roupas, consertá-las, acompanhá-lo nas consultas médicas.

Aos poucos o amor foi mudando, os dois já sem filhos dependiam mutuamente. Amavam-se por ser a única atividade que restara. Já não sabiam como se comportar sem a companhia do outro.

Aos poucos o amor foi mudando e o medo de perder ia se tornando cada vez mais forte. Apegavam-se um ao outro a um corrimão. Amavam-se com desespero dos últimos dias.
Até que João Carlos morreu de enfarte, pouco sofreu. Em compensação Amélia sofreu silenciosamente, como só o sofrimento mais fundo permite.

Sentada na entrada da capela esperava chegar o caixão do marido, sem acreditar que dali em diante não dividiria mais as cebolas e as revistas com João. O carro funerário vinha chegando e sem forças para levantar esperou que abrissem a porta do carro e retirasse o caixão.

Na posição em que estava não viu a caixa de mogno vindo em sua direção, pois estava de costas. Sentiu apenas uma batida contra sua nuca e o baque da testa no chão.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Preparei-me com galas e pompas para uma grande cerimônia. Decorei meu corpo nu com brilhos de purpurina. Tomei o mais demorado dos banhos de sais perfumados. Senti pela última vez seu aconchego, despedi-me com pesar, seria a última vez. Bordei o sorriso, abri os olhos. De um fôlego, nasci.