quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Romeu e Julieta


Chorei por causa da cebola. Não porque estivesse picando cebolas e sentindo aquela substância que evapora delas e entra nas minhas narinas e olhos. Estava descascando a cebola e e por isso chorava. A cebola não acaba. Não termina, não termina. É um infinito de cascas a serem tiradas, um desespero que tempera o feijão, o arroz, o bife e ainda se come cru. Desespero do que não acaba nunca e um choro que não é de lágrimas. É daqueles em que o olho fica ardido e a lágrima resseca.

Desespero do bife com batata frita sem banana a milanesa. Não faz sentido um prato sem banana. Na minha cabeça todas as comidas deveriam ser como o queijo com a goiabada, sempre doce com salgado e nunca esse prato seco de arroz, macarrão e lentilhas.

Pois o ser humano foi inteligente quando resolveu temperar tudo com cebola. Mas foi ignorante quando decidiu usar o conceito de doce com salgado somente na sobremesa.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Rádio de crente


Tem uma kombi que me leva para casa todos os dias, quase todos os dias. Uma kombi comunitária que para na esquina e espera as pessoas que voltam do trabalho. As mulheres que vão ao banco pagar as contas do marido e as avós que buscam as crianças no colégio. Elas conversam muito, as mulheres e as avós: futebol, desgraça, prefeitura, o preço das coisas. Falam muito com o motorista. Ele tem pressão alta, de vez em quando não tem kombi porque o homem se alimenta errado e passa mal. Aí a gente vai para o ponto de ônibus, ou então, rachamos um táxi, embora eu tenha vergonha de convidar alguns companheiros de condução, às vezes as pessoas não têm dinheiro para táxi. O ônibus convencional demora e dá muitas voltas. Melhor ir mesmo a pé, diz um homem. Mas normalmente o motorista está bem, conversa muito e conhece a gente. Torce pelo flamengo, como eu acho que quase todos os motoristas de ônibus insistem em fazer, e conta historias engraçadas de sua netinha. Criança é muito engraçada. É alegria do vovô, da vovó, uma gracinha. Todos falam mal do governo, da polícia, da guarda municipal e falam bem do pão fresquinho que vende na padaria do centro e do tempo aberto.

Ontem teve kombi e não havia ninguém esperando na parada. O motorista recostado, parecia cochilar. Como nunca, o rádio estava ligado. Sempre precisamos esperar encher a kombi ou dar o horário – a cada uma hora. Os passageiros demoravam a chegar e o motorista recostado compartilhava comigo e mais outra moça – ou duas – as músicas da rádio de crente. Ele não conversou ontem, nem sei se estava acordado ou se dormia. Mas no rádio eram músicas de crente. Dessa vez os passageiros demoravam a chegar e a kombi permaneceu estacionada pela uma hora certa enquanto tocavam as músicas. Não chegaram passageiros suficientes, então seguimos viagem mesmo assim. O motorista não conversou, apenas desligou o rádio quando deu a partida do carro. Acho que ontem ele não estava bem.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Escombros


Gisela saia para trabalhar já sabendo como seria o trajeto. Muitas cantadas, assovios, olhadas de homens que nunca vira antes, de olhos que pareciam conhecê-la bem, pois apreciavam seu corpo, seu jeito, sua boca, seus cabelos. Ela odiava e chegava ao trabalho odiando principalmente os colegas que diziam que ela deveria se arrumar mais e ser mais feminina.

Em um desses dias comuns, no mesmo trajeto, um homem, além de chamar sua atenção com um psiu, passou-lhe a mão na bunda. Atordoada, Gisela tentou não olhar para seu rosto. Deu dois passos rápidos, fugindo da agressão, mas parou de repente e resolveu se virar para o homem. Ele continuava parado, olhando, rindo, parecendo esperar que ela virasse para trás. Gisela reparou o uniforme de trabalhador e viu que ele estava na frente de uma obra iniciada há alguns meses.

Foi então que teve a ideia de ir até uma delegacia e registrar boletim de ocorrência contra o homem. Ao entrar na delegacia sentiu o mal estar que todos devem sentir ao chegar num lugar como esse . Dirigiu-se ao policial e contou o que havia acontecido há poucos minutos. Eu posso reconhecê-lo, ele ainda deve estar lá, no mesmo lugar.

Moça, mulher passa por isso mesmo. Mulher bonita, então, a senhora nem deve imaginar como é. Tem que tomar cuidado, não pode usar roupas provocantes (Gisela diminuta no camisão jeans e nas calças pretas), nem muita maquiagem (Gisela ressecada com rosto lavado de sabão de banho) e cabelo solto (Gisela no corte de sempre, recuado atrás das orelhas), essas coisas deixam os homens loucos. Ainda mais esses de obra... O homem parou e tomou um gole de café... que passam o dia todo com um monte de homem, sentindo cheiro de homem, bafo de homem, roupa de homem. Fica doido quando vê mulher.

Gisela não conseguiu responder, embora seu peito estivesse cheio de ar. A senhora quer uma água? É bom pra se acalmar, eu vou buscar ali dentro. Todos pensariam que o moço era muito atencioso e que a tratava melhor do que outros. Gisela pensava que poderia matá-lo ...

Ontem sua mãe disse que vira um rato passar pelo quintal. Se desesperou: ele deve viver aqui em casa. Tenho horror a rato, minha filha! Gisela ficou de comprar chumbinho. Ela colocaria num pedaço de pão e do dia para a noite encontrariam o ratinho morto. Mas que nojo! No caminho do trabalho ela parou no camelô e comprou o veneno. Esquecida, porém, do problema do rato, deixara o chumbinho na bolsa.

… e enquanto o policial foi buscar sua água, retirou da bolsa o vidrinho com bolinhas pretas que mais pareciam minúsculas bilhas que jogava na infância. Disfarçou pegando um panfleto sobre violência doméstica no balcão e lançou no copo de plástico ainda cheio de café três daqueles bilhas que serviam para matar ratos.

Aguardou mais alguns segundos o retorno do homem com o copo d'água que bebeu muito agradecida pelo favor e pelo conforto. Muito obrigada, bom trabalho. Não há de quê. Tome cuidado na rua. Gisela saiu da delegacia sentindo a quentura do olhar daquele policial, do outro que conversava junto à porta, do delegado, do chefe de polícia, do secretário de segurança. Todos na sua nuca.

Resolveu sair armada, a partir desse dia. Cada dia uma forma diferente de matar.

E matou: o homem da obra com uma faca de cozinha bem amolada. O cara do trabalho com uma vistosa maçã envenenada. O cobrador do ônibus com um tiro. O frentista de posto, queimado. O marido da tia-avó jogando-o da escada.

Matou-os todos, mas preferiu não ter matado quando numa quarta-feira, voltando do trabalho, foi levada para dentro de uma obra abandonada. Arrependeu-se quando sentiu sobre si os escombros dos homens assassinados.   

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Urubu

Robson chegou à casa do seu primo do outro lado da cidade escondendo a arma, embora soubesse que seus parentes conheciam o teor do seu trabalho. Um fugitivo não vai andar com uma arma à mostra, porém, não poderia se desfazer dela.
Ruan se desesperou, até queria ajudar o primo, mas tinha passagem pela polícia e não podia se encrencar de novo.

- Robson, você vai embora daqui, não quero problema com a polícia.
- Cara, eu vou ficar pelo menos até amanhã. Chama a tia que eu preciso de curativo.
-Vou te levar pro hospital.

Robson apontou a arma para Ruan e o ameaçou. Ou chama a tia e o ajuda a se livrar dessa ou morre.

Ruan foi até o puxadinho nos fundos da casa onde a mãe costurava e disse a ela que fosse correndo ajudar Robson.

Ele tá armado, faz o curativo e volta aqui pra salinha.

Tia Selma, a senhora tem que me ajudar. - Robson disse isso já tirando a camisa e mostrando as costas machucadas. O tiro de raspão tirou um naco da carne e a ferida estava muito suja. Tia Selma não falou nada com o sobrinho, foi até a cozinha pegou algodão e álcool. Esfregou o álcool na carne viva enquanto Robson apurava os ouvidos aguardando algum barulho perigoso.

Enquanto sua mãe fazia o curativo, Ruan foi até o quarto e pegou uma camiseta limpa. Ao voltar para a sala viu a mãe fechando a ferida com esparadrapo e ouviu o agradecimento do primo.

- Deus lhe pague, minha tia.
- Aqui uma camisa limpa. Quando é que você vai embora, Robson?
- Não sei.
- Melhor você ir logo, olha minha mãe aqui...
- Não vai acontecer nada com ela não, irmão, fica tranquilo. A tia fica lá dentro e você aqui de vigia.
- Mas eu preciso ir trabalhar.
- Não vai que eu não posso ficar aqui sozinho.
- Mas o que você fez?
- Não interessa. Amanhã eu arrumo um lugar pra ficar. Por enquanto eu fico aqui.

Naquela manhã, Ruan fora abordado por um policial na subida do morro. Tudo bem, irmão, pode subir. Era bom ouvir aquilo. O primo vai por tudo a perder. Mas sangue é sangue e dos nossos temos que cuidar. Era assim na família, na facção, na cadeia e ainda não conseguira se livrar da primeira das três instituições das quais já fizera parte. Pensava em seu futuro e lembrava de um passado tão próximo e tão bom...

Barulho de botas trotando na areia grossa das vielas o tirou dos seus pensamentos.

- Porra, me acharam!

Os dois sabiam que era a polícia ou vingadores.

- Tem uma arma aí, Ruan?

Claro que tinha, não era uma boa ideia, mas como não se proteger morando ali com sua mãe? Sempre podia ter alguém querendo um acerto com o passado. Pegou a arma e se protegeu na parede da cozinha.

- Vambora, não podemos ficar aqui esperando, não!

Abriu a porta e correu pelos labirintos das casas até chegar à outra saída do morro. Ruan atrás, sem nem saber por quê, achando gostosa a adrenalina da fuga. Quando deu por si, estava no asfalto com uma trinta e oito na mão.

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Cláudio até sabia do envolvimento do seu sócio com uma certa bandidagem. Não achava nada de mais: homens de negócios fazem negócios. O problema é que não sabia exatamente qual era o envolvimento, mas enquanto o sócio estivesse resolvendo as coisas não tinha problema.