quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Blues cool ou Hoje eu quero ser cool

Hoje eu quero ser cool. Quero aprender a tocar blues. Quero entender de jazz e rock. Hoje eu quero ser cool, saber bossa nova e literatura russa. Hoje eu quero ser cool, tropicalista. Não casar nunca de depois casar porque mudei de ideia. Hoje eu quero ser cool, não mais gostar de funk, beber cerveja gelada num bar sujo. Beber conhaque bem escuro. Hoje eu quero ser cool, ir à praia com um livro do Maiakóviski. Quero analisar cinema, escolher filmes pelo diretor. Hoje eu quero ser cool, não me sentir mais inseguro. Aprender a comer sushi, ter amigos cools. Brigar por política, chorar pela arte. Hoje eu quero ser comunista. Hoje eu quero ser cool, excluir meu orkut, despublicar meu livro. Quero ser cool da cabeça aos pés, o cu do cool.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A casa do lado (parte 3)

Corri até o quartinho quase de olhos fechados, mas antes de entrar olhei pra cima. Lá no último andar tinha uma janela para os fundos, na mesma direção da janela que dava para a frente. Vi a velhinha, na mesma postura, na mesma posição, olhando a gente. Gelei da cabeça aos pés, quase desmaiei e dei um grito quando Clara segurou meu braço mostrando a caixa de biscoitos que havia achado. Olha só, esta fechada, vamos comer? Não, não! Saí correndo e caí tentando escalar o muro. Fiquei colada à parede até o primo de Clara aparecer e me ajudar a pular.


Segura, do meu lado do muro, comecei a chamar Clara e o primo para que voltassem. O menino veio, mas sozinho. Disse que depois de me ajudar, voltou ao depósito e não encontrou Clara. Chamou, teve medo de gritar e acordar alguém. Era melhor esperarmos, sugeriu. Eu aceitei, apavorada. Fiquei sentada na varanda olhando a casa ao lado à espera da minha amiga. Foi quando uma luz se acendeu no último andar. Quase tão rápido quanto um piscar, não tive tempo para avisar ao menino. Quando me virei para contar a ele o que tinha visto, ele estava dormindo, encolhido no tapete como um cachorro, com as unhas sujas e o cabelo bagunçado.


Quando pisquei de novo já era dia, eu dormi na cadeira da varanda e o primo de Clara no chão. Minha mãe saiu da casa correndo, com a cara apavorada, por um momento pensei que ela soubesse o que acontecera com Clara. Ela se assustou ao ver o menino dormindo no chão e começou a pedir explicações enquanto nos levava pra dentro de casa.


Clara estava desaparecida e eu sabia o que tinha acontecido. Mas aparentemente, pelo menos para os adultos, o desaparecimento da menina em nada tinha a ver com a invasão à casa dos vizinhos na noite anterior. Soube que a polícia entrara na casa ao lado e revistara tudo. Lá apenas dois casais de idosos vivendo sob os cuidados dos filhos. No depósito dos fundos, nada além de velharia. As comidas velhas e estragadas foram jogadas fora e um policial ainda os aconselhou a tomar cuidado, pois a vizinhança estava cada vez mais perigosa.


Triste pelo desaparecimento de Clara e com medo de que o mesmo pudesse acontecer comigo, minha família resolveu se mudar. Sai de casa um pouco aliviada. Dentro do carro olhei pela última vez a casa ao lado. Na janela do último andar vi a velhinha com uma lata de biscoitos no colo, segurando a coleira de um imenso cachorro.

A casa do lado (parte 2)

Uma das minhas amigas, Clara, era apaixonada por velhinhos e tinha muita vontade de ir lá falar com aquela avó, pegar em sua mão, lhe presentear com biscoitos. Não sentia o mesmo medo que os outros, tinha pena. Ela sempre se perguntava se não precisavam de comida ou alimentos especiais, já que velhos costumam ficar doentes.


Durante as férias, Clara recebeu seu primo em casa. Ele logo se juntou ao curioso grupo que iam todos os dias espionar os vizinhos. Ainda sem o pavor que o resto de nós sentia, insistiu em pular o muro pra procurar o cachorro que tinha na casa, pois naquele dia os latidos não paravam e continuávamos sem ver nada.


Eu, muito medrosa, pedi que ele não fosse, e nem quis olhar quando subiu no muro e pulou para o outro lado. Meus joelhos tremiam tanto que precisei sentar no batente da varanda pra disfarçar. Menos de cinco minutos depois o menino voltou, esbaforido, com o rosto iluminado!
Ele andara em volta da casa, ninguém o notou. Foi até os fundos e tentou ver algo pela fresta da porta do quartinho. Viu muito pouco, mas com certeza não tinha cachorro. Parecia mesmo um depósito com várias caixas e prateleiras com coisas empilhadas. A aventura só serviu pra atiçar ainda mais a curiosidade das crianças e o meu pavor que nem por um momento diminuiu. Só aumentou, tanto que fiz xixi nas calças. E entrei correndo em casa, chorando de vergonha.


Soube depois por Clara que o primo entraria de novo lá à noite com grampos e arames pra tentar abrir o cadeado do depósito. Ela planejava ir junto. Tentei convencê-la a desistir, mas quanto mais eu argumentava mais ela se enchia de coragem. No fim cedi e disse a minha mãe que ela dormiria lá em casa. Assim, levantamos durante a noite e abrimos a porta para o primo dela que estava paramentado pra descobrir mais coisas essa vez.


O menino pulou o muro primeiro e eu ajudei Clara e subir. Fiquei olhando os dois darem a volta pela frente da casa. Nenhum morador apareceu. Nem cachorro. Chegaram à porta do quartinho e começaram a enfiar grampos e pedacinhos de arame retorcido até que, me dando sinal de positivo, o cadeado se abriu e os dois entraram. Demoraram pouco tempo lá dentro e eu já estava com vontade de vomitar de tanto medo. O primo de Clara veio correndo até o muro, onde eu estava, e me chamou pra ia lá ver. Era um depósito de comidas, enlatados de vários tipos, muito velhos e empoeirados. Comida de cachorro, pedaços de tecido enrolados em tábuas. Garrafas cheias e vazias. Criei coragem e pulei o muro

A casa do lado (parte 1)

Nunca vou à casa dos meus vizinhos. As pessoas me acham excêntrica, dizem que eu devo ir ao analista, que isso é algum tipo de síndrome ou fobia que me impede de me relacionar socialmente. Mas eu me relaciono muito bem, perfeitamente, menos com os vizinhos. Tudo porque na minha infância houve uma casa ao lado.

A casa era quase igual a minha. Morava naqueles conjuntos habitacionais antigos, em que as casas, antes iguaizinhas, já tinham sido modificadas. Essa era ainda bem parecida, com um andar a mais e um quarto separado nos fundos. Esse quarto, víamos de longe, não tinha janelas, apenas uma porta de madeira e com grade por fora. Parecia depósito de alguma coisa.

Havia movimento na parte interna da casa, víamos pessoas lá dentro, homens e mulheres quando abriam as cortinas. Adultos e idosos. O estranho é que eles nunca saiam. Esse era o mistério da casa. De onde tiravam comida se não iam ao mercado? Ninguém ia ao médico, nem saía de férias. Também não havia horta ou animais de que pudessem se alimentar.

Às vezes ouvíamos som de muitas conversas na casa, como uma festa, mas sem alegria. Eu, meus irmãos, minhas amigas da rua sempre espiávamos a casa pelo muro. Mesmo compartilhando o muro, meus pais não conheciam os vizinhos. Devem ser muito velhos e não podem mais sair de casa, somos novos aqui, por isso não os conhecemos, dizia meu pai. Embora já morássemos lá há 10 anos. E eu vi, havia pessoas jovens lá também. Pela janela eu enxergava uma mulher se cabelos compridos, dois homens baixos aparentando menos de 40 anos. Eles se movimentavam muito pela casa, passavam uns pelos outros sem nada dizer. Pareciam em um trabalho incessante.

Ouvia-se latido de cachorro e uivos, mas nunca vimos o bicho. Parecia que, como os outros moradores, ele vivia confinado na casa. Pensamos que poderia morar naquele quartinho dos fundos. Mas já haveria morrido, pois ninguém nunca ia até lá alimentá-lo.

E tinha os velhos, quatro velhos, dois casais. Uma das mulheres idosas ficava na janela do último andar olhando a rua, mas o vidro permanecia fechado. Mesmo quando chovia muito, com raios e trovões, mesmo quando saíamos ainda na madrugada de viagem à praia, a víamos na janela. Ela nunca dirigia o olhar.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Os dias caros

Há dias em que sua impressora funciona. Seu filme preferido vai passar na tevê. Alguém da família resolveu pedir pizza e o livro que você comprou na Internet chegou. Há dias em que nada no corpo dói e a mente está limpa. Dias em que sentimos vontade de malhar e que o doce não faz falta. Há dias em que duas pessoas queridas e distantes te ligam. Dias em que a gente esquece que o dinheiro existe. Que o telejornal existe. Nesses dias o capítulo da novela é bom e conseguimos ler um livro inteiro. Há dias que alguém que você ama está mais feliz, que as frutas estão saborosas e você consegue dormir plenamente.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Choro

Ontem meu pai chorou pela primeira vez. Lembro-me bem de que ele dizia que era balela isso de homem não chorar. Que o choro era a manifestação fisiológica de nosso estado de espírito. E eu chorava, me sentia livre pra abrir o berreiro. Era uma felicidade imensa dentro da tristeza que provocava aquele choro. E quando os moleques me chamavam de maricas – quando alguém me machucava no futebol ou me ofendia na escola – eu dizia que meu pai, o maior homem da face da minha terra, dizia que todo mundo tinha direito de chorar, até os homens. Mesmo assim papai nunca chorava. Eu pensava que só podia ser porque ele era muito feliz, não tinha motivos pra ficar triste e esse era o melhor estado em que alguém podia se encontrar. Mas, ontem, a professora de geografia faltou e eu fui pra casa mais cedo. Chegue na sala e não havia ninguém, fui entrando devagar e vi, dentro do meu quarto (meu e de meus irmãos), olhei e vi, vi sentado na cama, vi meu pai, chorando abraçado a uma boneca.

Dor de cotovelo

Saí de casa com vontade de comprar uma arma, o pior presente que eu poderia me dar, te dar. A arma pra mim, a bala pra você. A pior desgraça das nossas vidas. Muito pior pra mim. Com ou sem culpa, talvez uma mulher atrás das grades. Talvez um pouco mais feliz em liberdade de ti. Mas será a morte única solução? Culpa sua, antes de tudo, as manchas no meu corpo. Se houvessem desculpas depois, um pedido de perdão antes de deixar a casa. Ou se pelo menos não me deixasse saber, se me dopasse, mentisse, fosse viver em outro país. Mas aqui, nesse amor ilegal, me machucando por querer, me abandonando por outra... faz-me achar que uma arma, só uma arma pode resolver esse problema.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Evon e suas cópias

Sábado de almoço em família era sempre a mesma delícia, uma comidinha gostosa, coca-cola, o dia todo para ver televisão e uma noite inteirinha pra dormir. Numa noite quente como os diabos, Evon adormeceu assistindo a um filme na televisão. Logo seu ronco gutural ressoou pela casa. Cada filho, em cada quarto, em cada sonho, ouvia aquele som, fossem trovoadas, ursos na floresta ou uma cachoeira. Evon, por sua vez, sonhava com trovões, ursos e cachoeiras. Numa noite de tempestade se via correndo pela floresta, entrando cada vez mais na mata fechada. Seus passos pareciam se multiplicar nas folhas molhadas quando seu desespero o derrubou em frente a um gigante urso pardo que arreganhava unhas e dentes. Apavorado, Evon conseguiu levantar-se e correr do animal, que, apesar de forte, era lento. Por entre as árvores, Evon avistou uma clareira e seguiu nessa direção, com o gigantesco urso já longe. Porém não era uma clareira, era um precipício de cachoeira com águas borrifantes. Evon caiu direto no rio e o baque de seu corpo o acordou do sonho. Mas, embora tivesse conseguido sair do pesadelo, a sensação de afogamento continuava. Evon sufocando se debateu e olhou para o lado. À sua direita outro Evon dormindo a altos roncos. Sacudiu sua cópia até acordá-la. Mas à direita dela, lá estava mais um Evon se afogando em sonho. Sacudiu, acordou, cada uma de suas cópias que se multiplicavam. Até que, incontáveis Evons depois, conseguiu sair da longa apnea em que entrara durante o sonho.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Ítens críticos

Análise crítica e multimodal da fila de "até 10 ítens" no supermercado de segunda-feira:
Mulher/homem com criança: Danininho, biscoito Passatempo, Fandangos, leite, guaraná.
Homem sozinho: Pão, queijo (fatiado), presunto (fatiado), caixa de pizza congelada, caixa de lasanha congelada, coca-cola normal.
Homem sozinho versão academia: Bandeja de bife, peça de carne, ovos, banana, pão integral.
Mulher sozinha: Pão integral, peça de queijo branco, pacote de penne, molho de tomate, coca-cola zero.
Mulher sozinha versão dieta: Iogurte (light, desnatado ou laxativo), rúcula, limão, abobrinha, lata de atum light, barrinha de cereal.

Questão existencial

A cyber era é uma ilusão. Enquanto milhões postam suas fotos no orkut, usam seus msn’s com frases de efeito pra atingir ex-namorado ou pra mudar o mundo. Enquanto eu posto esses contos achando que sou o próximo fenômeno editorial... Outros milhões, e um número muito maior de milhões, jamais buscou seu nome no google, nunca teve uma conta de email, nunca votou no paredão do bbb pela Internet. Nunca mandou um sms, nem reencontrou os amigos do jardim de infância num site de relacionamentos. A questão é: me sinto privilegiada por fazer parte da rachada cyber era ou me sinto excluída do mundo real?

sábado, 17 de janeiro de 2009

Primeiro emprego (2ª parte)

Caminhou pela rua da terra até chegar ao bar. Parou no balcão e ficou olhando o movimento, encontrou Jorge, um conhecido da escola. Já tinha dezoito anos e agora quase ninguém falava com ele. Com Jorge ainda falava, era uma pessoa boa, terminara a escola e agora fazia curso de computador.Jorge, eu quero largar a escola. Não larga, falta pouco, você só repetiu dois anos. Não agüento mais entrar lá. Por que você não faz o supletivo? É? Curso a distância só vai lá fazer a prova. Não tem que ir à aula? Só às vezes. Jorge, como sempre na minha vida. Não exagera. Jorge ainda ficava tímido... Como estava de passagem, foi embora deixando-o no bar, feliz, renovado.Do balcão percebeu que era olhado por um homem parado em frente à sinuca. O tal homem se dirigiu, devagar na sua direção. Não sentiu vontade de sair dali, nem de desviar o olhar, deixou que se aproximasse.Oi garoto. Oi. Qual é a sua idade? Dezoito. Já pode beber. Uma cerveja aqui pro rapaz. Precisa não moço. Deixe disso.À meia-noite voltou para casa com duas notas de vinte no bolso. Até que ter dinheiro era bom.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Itens de filme de terror

Espelhos, chaves, cabelos compridos, telefone, água (goteira, banheira, pia transbordante e banho de chuveiro), televisões fora do ar, elevadores antigos, poços, lustres de cristal, sotão ou porão, fitas de vídeo, bosques, neblina, babás e acompanhantes em geral, estudantes de uniforme, música de caixinhas de música ou outros mecanismos do tipo, crianças entre cinco e oito anos, vento. Tenho medo de tudo isso, muito medo.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Primeiro emprego (1ª parte)

Julia rima com o quê? “O quê” rima com porquê. Quando a gente escreve poesia tem que rimar, mamãe? Acho que tem, pergunta ao seu pai. Cadê papai? Trabalhando.Papai trabalhou muito naquele dia, tanto que não voltou. Depois eu aprendi que poema podia ter rima ou não e que poesia era o gênero. Fulano escreve poesia. Esse poema de fulano é uma porcaria. Hoje eu sei.Cláudia não fazia poesia, nem porcaria, mas era uma coisa bonita e triste.Fomos juntas ao salão pela última vez. Eu fiz luzes, ela uma hidratação e escova. Já estava com os cabelos pela cintura, naturais. Também não teve pai. Aonde vão os pais? Eles somem, deve haver um paraíso tropical onde eles se exilam. E ficam lá, bebendo piña colada, assistindo aos campeonatos de futebol de todos os países.Fazia anos que Cláudia e eu freqüentávamos o mesmo salão. Meu cabelo já havia sido de todas as cores. Mas ela não. Mamãe, preciso trabalhar, a senhora já está doente de novo. Meu filho, eu ainda tenho força, sou nova pra trabalhar em casa de família. É nova, mas está doente. Quero que fique em casa, mamãe. Já estava na hora, dezoito anos, podia ir para a rua, fazer a vida. Ou quem sabe, Julia daria uma força.Preciso de dinheiro, Julia, lá no seu escritório não tem trabalho pra mim? Agora não tem vaga nenhuma, acabaram de contratar três funcionários, mas faz um currículo que eu levo. Que currículo, amiga, eu não tenho nada, nem terminei o segundo grau, e que sacrifício está sendo.A casa onde nascera foi construída pelo avô na ilusão de fazer um casamento para filha. Jamais aconteceu, só uma gravidez. A família estava feita e morava na casa de dois cômodos. Elas foram crescendo ali, se sentindo menos, não querendo mais. Mamãe, não quero ir à escola hoje. Tem que ir meu filho, a escola é o que dá futuro. Que futuro eu tenho? Por que todos me olham? Não pense nos outros, você é só na vida. Eu tenho a senhora. Vamos tomar a sopa. Sempre comíamos com o suor pingando no rosto, salgando a sopa. Mamãe, não quero comer, vou sair.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A carniça

Ana ia passeando pelo bosque alegremente entre arbustos de amoras, pedras escaldantes e lagartos de couraça cinza. Apesar do calor, Ana estava bem disposta e animada. Estava decidida a fazer exercício para voltar à forma.

Ao seu redor podia ver prédios de todos os tamanhos e se apurasse o ouvido o som de buzinas e falatório o invadiria.

Alguns pássaros a circundavam e aquilo dava uma sensação ainda mais agravável à caminhada. A sombra dos pássaros vinha brincar entre os pés de Ana. Mas aqueles pássaros não tinham canto de sabiás e canários, nem eram pardais, nem os pombos urbanos. Ana olhou para cima e viu que eram grandes e estavam cada vez mais baixos, descendo em círculos. Descendo cada vez mais. E chegando muito. Realmente muito perto. Urubus!

- Ai, eu ainda to viva, porra!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Livros dão náusea? 2

A primeira postagem com esse título me deu a idéia de usar o blog pra registrar minhas leituras ao longo do ano. Nunca sei ao certo quantos livros li, mas gosto de contabilizar. Assim, depois de um tempo posso voltar ao blog e me lembrar das coisas que li, das que não foram adiante e dos livros que comprei e ainda não saíram da pilha (ou não entraram na pilha "prioridades de leitura").

Então, atualizando. Terminei Capitães da areia. Ainda não decidi se quero ler O ovo apunhalado, pulei alguns contos, mas ainda está por perto, não sei se vou guardá-lo. Anna Kariênina, é claro, ainda vai pela página 230, e vai exigir bastante tempo, porque não sei ler depressa. Comecei A força do destino, da Nélida Piñon e estou na metade. Ainda tenho Sagarana na pilha de prioridades até o fim das "férias". Será que eu chego?

A festa

Passou batom mirando-se no retrovisor. O cordão era joia, o anel, bijuteria. Ambos bonitos e combinando perfeitamente com a roupa e o penteado. Mais uma festa de sábado. Ah que maravilha, pensava Graça. Apaixonava-se pela noite e por si mesma, o champanhe estaria gelado e brilharia sob sua boca. Mas o trânsito, hein... o sofrimento de sempre, em pleno sábado à noite. Nada se comparava aos engarrafamentos das segundas-feiras, mas as ruas livres das noites de sua juventude já não havia.
Não falava de juventude com essa distância toda, afinal tinha apenas 35 anos. Se sentia na flor dos anos, uma tartaruga que apenas começava a sair por aí.
Além do trânsito, essa quantidade absurda de sinais. Pra quê, meu Deus? Só para atravancar nossa vida, pensava com pressa.
Distraída em um desses sinais atravancadores, ouviu o anúncio do assalto. Passa a bolsa, passa o relógio, passa o anel. A arma a obrigava a passar tudo. O cano chegara a tocar de leve seu braço, pois o assaltante gesticulava com ela. Foi tudo tão rápido que logo veio o alívio. O sinal abriu. Antes de sair com o carro, se olhou de novo no retrovisor. O cordão estava lá, e em seu colo, o batom. Retocou.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Primeiro dia de verão

Hoje fez dia lindo. O primeiro dia de verão de verdade, igual àqueles que faziam quando eu era criança. Cheiro de planta entrando pela minha janela. Esse cheiro só aparece quando faz sol, um sol quente, mas com a brisa que faça entrar o aroma do verão pela janela. Esse cheiro é permanente em Natal, aqui só na primavera e no verão. No ano passado, tão fraco de sol e dias bonitos não senti cheiro de planta. Mas 2009 chegou já com esse maravilhoso aroma de vida, sensação boa no corpo, vontade de deitar e abrir as narinas deixando aquela delícia entrar. Maravilhoso. Hoje senti isso, foi o primeiro dia do meu verão.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Á moda antiga

Minha gentileza a impressionou. Por que as mulheres são tão impressionáveis? Já não são mais. Essa é à moda antiga. Achou lindo e incrível que eu a levasse a um restaurante, que pagasse a conta, que tivesse meu próprio carro, a buscasse e deixasse em casa, que não a levasse pra cama no primeiro encontro. Fácil conquistar mulheres. Essa já havia terminado os estudos, mas não trabalhava, ganhava mesada do pai e fazia curso de francês. A família desejava um bom casamento com tudo como mandava o antigo figurino. À moda antiga. No segundo encontro, dei a ela uma caixa de bombons finos. Um encanto. E entrei na casa para conhecer a distinta família. Senti vergonha das minhas intenções. Mas que importa? Azar é desse povo de pensamento antigo. A menina era linda e bem cuidada, tudo o que eu queria. Nem de longe aquelas maloqueiras universitárias, dia e noite de jeans, dia e noite de Nietzsche. Essa falava da tv, do Brasil e de filhotes. Bem à moda antiga. A deixei em casa na segunda noite, mas beijamos no carro e toquei suas pernas. Só mais um encontro. Convidei-a para conhecer minha casa, assim ganharia sua confiança. O jantar foi um sucesso. Apresentei meus pais e meu irmão. Apresentei os cachorros por quem ela se apaixonou. Conversou a noite toda sobre raças e rações. Não a levei em casa, pois me disse que tomaria um táxi sem o menor problema. Achei ótimo, um pouquinho de independência não faz mal a ninguém. No dia seguinte ela voltou de vestido amarelo e com presentes para os cachorros. No outro dia, vestido azul e presente para os cachorros. No outro, vestido rosa e presente para os cachorros. Não consegui mais dormir: mulher louca. Aquilo não era normal! Se ela voltasse pela manhã chamaria a polícia. Mas os vizinhos o fizeram por mim, dizem que ela chegou de Kombi branca, máscara de meia calça e vestido verde, embarcou os cachorros e saiu cantando pneu.

Pleonasmo

Saindo pra fora pediu ajuda:
– Ele está com hemorragia de sangue!
– Quando foi isso, senhora?
– Há um minuto atrás.
– E o que aconteceu?
– Caiu pra baixo, será que teve traumatismo craniano na cabeça?
– Calma dona, quem foi?
– Meu filho, menino macho. Tava só eu e ele, só. Eu pisquei os olhos e ... Entra lá dentro de casa e vê. Tenho medo de ver meu filho um defunto morto!

Juliana

Ganhara uma boneca feia, como a maioria das bonecas era. Mas encantadora aos seus olhinhos. No dia seguinte ao aniversário acordara cedo com medo de que o presente fosse apenas sonho.
Lá estava, sua boneca e melhor amiga. O nome escolhido foi Juliana. Ficavam deitadas na cama conversando por horas, contavam segredos uma para a outra. Eram mãe e filha, vice-versa. As melhores horas do dia, só não podia levá-la à escola. Não tinha problema, lá falava muito sobre a sua Juliana.
- Filha, se arrume que vamos sair.
- Posso levar Juliana, mãe?
- Hoje não, filha.
A menininha foi triste e ficou amuada na casa da madrinha, sem beber refrigerante nem comer o brigadeiro da festa do priminho.
- Filha, vou te levar ao médico, acho que está doente.
- Posso levar Juliana?
- Médico não é lugar de brinquedos. Ainda mais essa boneca grande.
E mais triste a amuada ficou a menina.
Não gostava de passear, nem ir à lanchonete que tanto gostava se não pudesse levar Juliana.
- Filha, hoje nós vamos á festa da tia Jô.
- Não quero, mamãe. Quero ficar com Juliana.
- Está bem, hoje não te levo, fique brincando.
Uma alegria imensa tomou o peito, todo o corpo da menina. Nem esperou a mãe sair, correu para o quarto. Juliana a esperava na cama. Deitou-se em seu colo e Juliana a pôs para dormir com histórias e cantigas. Assim que a menina adormeceu, Juliana a colocou na prateleira de brinquedos, voltou para a cama e dormiu.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Gérbera vermelha

O rapaz me deu um sorriso, e eu era um homem de terno. Qual o problema, homem de terno? Preconceito meu, mesmo assim achei estranho. Cumprimentei de volta e fiquei quieto esperando o elevador chegar ao térreo. Na volta do trabalho havia uma flor no capacho de casa. Uma flor vermelha que não sabia o nome. Busquei na Internet imagens de flores pra descobrir o nome daquela: gérbera. Não pus na água, larguei em cima da mesa de jantar. Sem desprezo, apenas deixei que ela morresse.
Não morreu, de manhã ainda estava bonita e fresca. Assim como ele, no máximo dezenove anos. Assustadoramente dezenove anos. Guardei com ternura a flor no bolso interno do paletó. Desci de escada por puro medo, mas me detive astuto na portaria.
A porta aberta do elevador e ele saindo. “Bom dia”. “Oi”. Saímos juntos em direção ao centro da cidade, talvez ele fosse à faculdade. Eu de terno, suando muito por dentro. O rapaz fez menção de atravessar a rua, eu entraria à direita. “Vou por aqui”. “Tchau”. Se despediu com um beijo na boca e a mão na flor. O rapaz me deu um sorriso, e eu era um homem de terno. Qual o problema, homem de terno? Preconceito meu, mesmo assim achei estranho. Cumprimentei de volta e fiquei quieto esperando o elevador chegar ao térreo. Na volta do trabalho havia uma flor no capacho de casa. Uma flor vermelha que não sabia o nome. Busquei na Internet imagens de flores pra descobrir o nome daquela: gérbera. Não pus na água, larguei em cima da mesa de jantar. Sem desprezo, apenas deixei que ela morresse.
Não morreu, de manhã ainda estava bonita e fresca. Assim como ele, no máximo dezenove anos. Assustadoramente dezenove anos. Guardei com ternura a flor no bolso interno do paletó. Desci de escada por puro medo, mas me detive astuto na portaria.
A porta aberta do elevador e ele saindo. “Bom dia”. “Oi”. Saímos juntos em direção ao centro da cidade, talvez ele fosse à faculdade. Eu de terno, suando muito por dentro. O rapaz fez menção de atravessar a rua, eu entraria á direita. “Vou por aqui”. “Tchau”. Se despediu com um beijo na boca e a mão na flor.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Livros dão náusea?

Em mim dão. Ok, eu sou uma pessoa ansiosa e aflita e isso não muda quando eu leio. Piora. Às vezes quando quero terminar logo o livro, outras quando sinto pena do livro estar terminando. Ou então quando a trama parece que vai ter desfecho (tudo bem se não tiver, já estou acostumada), e só faltam duas páginas! Áhhhh, que aflição! Ultimamente esses sintomas têm piorado, todo livro me deixa nervosa, agoniada e com enjoo. O que será isso minha gente? Dos que estou lendo: Capitães da Areia me dá nervoso pela impressão de que o livro começa a terminar na metade do volume. O ovo apunhalado me dá aflição porque simplesmente não sei se quero ler. E Anna Kariênina me embrulha o estômago por medo de não conseguir terminar aquele livrão. Tenho probleminha.

O espelho

Claudia se olhava no espelho oval. Já era noite e não havia muito barulho lá fora, às vezes passos, às vezes latidos. O espelho era tão antigo quanto as paredes daquela casa que também refletiam formando uma moldura negra ao redor da cabeça de Claudia. Eram muitos anos de fumaça impregnada pretejando os tijolos rudes e criando aquele odor tão peculiar a casa.
Se olhava e se via linda. As lentes de contato verdes pareciam naturais. Mas o nariz era bruto demais, quem sabe se um dia ganhasse muito dinheiro pudesse fazer uma plástica para afiná-lo. O vestido estava bom, velho, mas sempre reformado de acordo com a moda. Tudo lhe caía bem.
A fumaça no ambiente começava e se adensar e embaçar o espelho. Claudia passava sua bolsa, muito pequena e quase vazia, pelo vidro e voltava a contemplar sua beleza procurando manchas e espinhas que a maquiagem se recusava a esconder. Mas para quê? Mesmo sem maquiagem sua beleza era superior. No trabalho isso causava muitas brigas, as outras não a queriam por perto roubando todas as atenções. Mas suas amigas, as verdadeiras, diziam: Claudia, você é a mais bonita de nós, um dia vai tirar a sorte grande e encontrar alguém que te leve daqui. Tinha fé nisso.
Um rumor de passos vinha em direção a casa. Aos poucos o som das chinelinhas de couro se aproximava tirando Claudia de dentro de seus pensamentos e fazendo com que se desse conta do calor que fazia ali.
Carlos, Carlos, meu filho, a sopa está pronta, toma um pouco antes de ir trabalhar. Sim mamãe, mas só um pouco. Precisava manter seu corpo enxuto e belo, precisava trabalhar ainda mais para dar uma casa de verdade com um fogão de verdade para sua mãe.
Se pudesse largava tudo e ia embora, mas não podia abandoná-la. Olhava a mãe comendo em sua frente. Agora o espelho refletia o topo das duas cabeças. Já vou mamãe. Vá com Deus, meu filho.
Deu a última olhada do espelho, ajeitou o vestido e saiu bamboleando sobre o salto alto de verniz.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Feliz ortografia nova!

Tive a ideia de pegar o voo no turno. Maravilha! Todos dormindo, um silêncio autopiedoso. Maravilha mesmo! Não aguentava mais toda aquela agitação de festas. Por que as pessoas ficam tão histéricas? Parece que o mundo vai acabar e hoje é o último dia pra sofrer um acidente e morrer! Simplesmente não faz sentido. Dá vertigem, dá enjoo de existir. Mesmo assim a gente viaja e depois percebe que tomou a decisão mais estúpida do mundo. Mas fazer o quê, né? Já estamos fora de casa, sendo recebidos por amigos bêbados que acham que a vizinhança toda cabe num micro-ônibus que vai até a praia. Igualmente lotada. Cinquenta por cento da praia é composta por crianças perdidas e os outros cinquenta, por pais irresponsáveis que não estão nem aí. Suportei dois dias, mas quando me lembrei da queima de fogos, do banho de champanhe e dos abraços de feliz ano novo resolvi: volto ainda hoje! E daí ser chamada de antissocial? Sou mesmo! E por isso amei o voo das 21horas na véspera do ano novo. Poucas pessoas, ninguém pra conversar. Um livro sobre Antiguidade e nenhuma história pra contar.

O teste

Ele disse:
- Vá ser Rainha do Lar.
Ela disse:
- Não, serei atriz.
Em pequena dançava e cantava para os pais e tios, se fantasiava de princesa e desfilava pela sala de estar.
- Cozinhar como minha mãe? Não, eu gosto de comer bem sem precisar entrar na cozinha.
Que orgulho tinha a mãe, sua menina independente, linda, uma princesa de verdade.

*******

Ele disse:
- Será mãe também.
Ela disse:
- Jamais serei mãe, prezo pela a liberdade.
Planejava viagens que contava às primas, convidado-as para irem juntas pela Europa, Miami, México. Lia guia de viagens e revistas de celebridades, todas, uma pilha ao lado da cama.
- Minha filha lê muito, passa horas no quarto com as revistas.
Põe as revistas de lado, abre a porta do armário e dança, tira o vestido e dança em roupas de baixo. Se olha de um lado, de outro, tenta se mirar de costas. Difícil. Quem sabe se tirar fotos...
Passa hidratante, não quer ter estrias. Homens? Nem pensar, nada de perder tempo com esses garotos bobos, tem um futuro para cuidar.
- Mamãe, lasanha no jantar? Já não te disse que não como carboidrato depois das 6 horas? Vou me deitar.
- Narciso, me lembre de passar no sacolão amanhã para comprar umas verduras, a menina não pode comer massa. Ah, Narciso, ela está se cuidando. Ué, para ser artista. Você não sabia que artista não come massa depois das 6 horas? Nas revistas que ela lê diz isso.

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Ele disse:
- Vá conhecer um homem.
Ela disse:
- Eu o escolherei.
No dia do teste para o comercial saiu de casa cedo acompanhada pela mãe. Calça jeans e camiseta branca como dizem que é adequado para testes. Cabelos soltos e sem maquiagem para mostrar a beleza natural.
A fila já ia longe, muitas meninas de várias formas, idades e tamanhos. Muitas mães também.
- Nossa, minha filha, é tanta gente.
- É mamãe, os teste para comerciais são muito divulgados.
- Mas você é a mais bonita.
- Eu sei, mamãe.
O teste consistia em: ficar parada em frente a uma tapadeira branca, fica de perfil, outro lado. Sorriso. A próxima. Resultado em duas semanas.

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Ele disse:
- No próximo teste vá de minissaia.
Ela disse:
- Não desistirei nunca.
Muitos testes e pequenos comerciais depois, chega o dia de gravar um videoclipe. Uma cena de festa, com muitas moças e rapazes dançando enquanto o (novo) astro do vídeo canta no palco com suas bailarinas principais.
- O vídeo vai ser um sucesso, vai alavancar a carreira dele.
- E você aparece, filha?
- Apareço, eles mostram a hora em que eu rebolo até o chão.
A mãe tremia de emoção quando o vídeo foi exibido às 5 horas da manhã de uma segunda-feira.
Uma semana depois o telefone toca. É o empresário do tal artista.
- Uma de nossas bailarinas foi selecionada para um reality show, precisamos de uma suplente, você gostaria de fazer o teste?
- Claro, disse sem demonstrar entusiasmo. Desligando o telefone, começou a pular e abraçar a mãe gritando!
Correu para o quarto ensaiar a coreografia.
Com tanto empenho ela passou no teste, recebeu os figurinos. Pequenas casas em que faziam números pequenos, com duas ou três músicas. Sempre esforçadíssima, simpática e alegre, as portas estariam se abrindo para o sonho.
No camarim recebeu elogios do empresário.
- Você sabe cantar?
- Um pouco.
- Vamos fazer uns testes de voz no meu estúdio.
- Sério? Claro!
- Mas não leve sua mãe, essas coisas demoram e você já está bem grandinha, não é?
- É, na verdade eu tenho vinte e cinco anos.
- Vinte e cinco? Parece ter dezoito.
- Eu sei, na verdade eu gostaria que as pessoas não soubessem minha idade verdadeira.
- Sem problemas, linda.

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Ele disse:
- Mostre a voz, mas não se esqueça de seus outros talentos.
Ela disse:
- É claro que mostrarei.
O estúdio ficava em uma casa muito bonita, tinha até piscina. Antes de começar a trabalhar sugeriu um mergulho, umas bebidas. Tinha biquínis no quarto de hóspedes, era só escolher.
Ela achou o quarto lindo e muitos biquínis de grife. A maioria ficava grande na parte de cima, mas conseguiu um que deu direitinho. Antes de sair, olhou mais uma vez no espelho, respirou fundo e saiu.
Em uma das espreguiçadeiras estava o empresário, de bermuda com um copo de uísque na mão. Ela se sentiu em um seriado americano. Gostava. Mas sabia onde aquilo ia terminar.
- Ficou linda nesse biquíni, mas posso fazer uma sugestão?
- Pode, disse baixinho.
- Você tem seios pequenos, não destacam sua beleza.
- É, a maior parte dos biquínis que eu vi na gaveta eram de tamanhos maiores.
- O que acha de botar uns implantes?
- De silicone?
- É.
- Não tenho dinheiro para isso ainda.
- Eu pago, aliás, te faço um empréstimo. É um investimento na carreira, vai por mim.
Já se sentir linda e poderosa em um sutiã tamanho 42. 42 não, 44. Em uma reunião com a equipe do cantor, o empresário comunicou que a moça seria substituída por umas semanas, pois passaria por uma cirurgia. Ninguém se opôs, é claro. A outra moça já estava devidamente paramentada e não teve inveja.
A semana da cirurgia ela passou na casa do empresário. Primeiro naquele quarto de hóspedes que havia conhecido no primeiro dia, depois no quarto do dono da casa onde havia mais conforto e uma cama enorme. Até agora não havia feito o tal teste de voz, mas para quê?, o investimento que faria valia a voz e todo o resto.
Depois da operação o empresário veio comunicá-la de que a estava desligando do grupo.
- Mas como? Por quê?
- Porque eu tenho vôos mais altos para você, linda. Gravação de um cd, ensaio para revista...
Jogou-se sobre seu empresário, dando um gemido de alegria e de dor porque ainda doía o busto quando apertado. Não conseguiu agradecer com palavras e ele, já acostumando com moças recém operadas, fez de tudo para não machucar ou pressionar os novos seios.
Já linda, totalmente recuperada, fez fotos sensuais para uma revista. A verdadeira estrela, ex-dançarina, empresariada por um grande nome do showbiz. A mãe comprou quinze exemplares e distribuiu pela família.
- Olha, Narciso, nossa menina. Vulgar nada, muito bom gosto. Ela vai sim, logo, logo recebe o convite. Nu artístico, Narciso. Pode se preparar.
Antes da leitura do contrato recebera um outro documento para ler. Estava escrito: positivo para gravidez e negativo para HIV. Alívio. Desespero.
- Mas o ensaio é para daqui a um mês, até lá você vai ter engordado. Vou pedir a revista que fotografe o mais rápido possível.
A revista não podiaria mudar as datas e já tinha outro nome em vista. Tudo bem, pensava ela, gravava seu cd durante a gestação, logo que o bebê nascesse fazia regime, uma lipo e pronto, faria a revista.

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Ele disse:
- Vá ser Rainha do Lar.
- Linda, pega mais um uísque aqui para mim.
Deixando a babá pegar seu filho no colo foi até o bar e pegou a garrafa fechada. Atrás do balcão havia um espelho. Se olhou como no primeiro dia, mas agora vestida com uma malha de ginástica. Forjou o sorriso e foi servir o empresário e os convidados. Sentou-se junto a eles.
- O que acha dessa menina, amor? Estamos pensando em fazer um teste de vídeo com ela.
- Bonita.
- Muito bonita, só tem dezoito anos.
- Acredita que essa gata aqui tem vinte e seis anos?
- É mesmo?! Não parece. Homem de sorte você, hein?
- Sorte mesmo. Ainda me deu aquele meninão ali e mais tarde, quem sabe, volta à carreira artística.
Olhando-a com carinho fez sinal que entrasse. Ela se dirigiu à cozinha para supervisionar a empregada. Pegou a mamadeira do filho e entregou à babá sentando-se ao seu lado no sofá, de frente para a televisão ligada.