Gisela saia para
trabalhar já sabendo como seria o trajeto. Muitas cantadas,
assovios, olhadas de homens que nunca vira antes, de olhos que
pareciam conhecê-la bem, pois apreciavam seu corpo, seu jeito, sua
boca, seus cabelos. Ela odiava e chegava ao trabalho odiando
principalmente os colegas que diziam que ela deveria se arrumar mais
e ser mais feminina.
Em um desses dias
comuns, no mesmo trajeto, um homem, além de chamar sua atenção com
um psiu, passou-lhe a mão na bunda. Atordoada, Gisela tentou
não olhar para seu rosto. Deu dois passos rápidos, fugindo da
agressão, mas parou de repente e resolveu se virar para o homem. Ele
continuava parado, olhando, rindo, parecendo esperar que ela virasse
para trás. Gisela reparou o uniforme de trabalhador e viu que ele
estava na frente de uma obra iniciada há alguns meses.
Foi então que teve a
ideia de ir até uma delegacia e registrar boletim de ocorrência
contra o homem. Ao entrar na delegacia sentiu o mal estar que todos
devem sentir ao chegar num lugar como esse . Dirigiu-se ao policial e
contou o que havia acontecido há poucos minutos. Eu posso
reconhecê-lo, ele ainda deve estar lá, no mesmo lugar.
Moça, mulher passa por
isso mesmo. Mulher bonita, então, a senhora nem deve imaginar como
é. Tem que tomar cuidado, não pode usar roupas provocantes (Gisela
diminuta no camisão jeans e nas calças pretas), nem muita maquiagem
(Gisela ressecada com rosto lavado de sabão de banho) e cabelo solto
(Gisela no corte de sempre, recuado atrás das orelhas), essas coisas
deixam os homens loucos. Ainda mais esses de obra... O homem parou e
tomou um gole de café... que passam o dia todo com um monte de
homem, sentindo cheiro de homem, bafo de homem, roupa de homem. Fica
doido quando vê mulher.
Gisela não conseguiu
responder, embora seu peito estivesse cheio de ar. A senhora quer uma
água? É bom pra se acalmar, eu vou buscar ali dentro. Todos
pensariam que o moço era muito atencioso e que a tratava melhor do
que outros. Gisela pensava que poderia matá-lo ...
Ontem sua mãe disse
que vira um rato passar pelo quintal. Se desesperou: ele deve viver
aqui em casa. Tenho horror a rato, minha filha! Gisela ficou de
comprar chumbinho. Ela colocaria num pedaço de pão e do dia para a
noite encontrariam o ratinho morto. Mas que nojo! No caminho do
trabalho ela parou no camelô e comprou o veneno. Esquecida, porém,
do problema do rato, deixara o chumbinho na bolsa.
… e enquanto o
policial foi buscar sua água, retirou da bolsa o vidrinho com
bolinhas pretas que mais pareciam minúsculas bilhas que jogava na
infância. Disfarçou pegando um panfleto sobre violência doméstica
no balcão e lançou no copo de plástico ainda cheio de café três
daqueles bilhas que serviam para matar ratos.
Aguardou mais alguns
segundos o retorno do homem com o copo d'água que bebeu muito
agradecida pelo favor e pelo conforto. Muito obrigada, bom trabalho.
Não há de quê. Tome cuidado na rua. Gisela saiu da delegacia
sentindo a quentura do olhar daquele policial, do outro que
conversava junto à porta, do delegado, do chefe de polícia, do
secretário de segurança. Todos na sua nuca.
Resolveu sair armada, a
partir desse dia. Cada dia uma forma diferente de matar.
E matou: o homem da
obra com uma faca de cozinha bem amolada. O cara do trabalho com uma
vistosa maçã envenenada. O cobrador do ônibus com um tiro. O
frentista de posto, queimado. O marido da tia-avó jogando-o da
escada.
Matou-os todos, mas
preferiu não ter matado quando numa quarta-feira, voltando do
trabalho, foi levada para dentro de uma obra abandonada.
Arrependeu-se quando sentiu sobre si os escombros dos homens
assassinados.
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