segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Escombros


Gisela saia para trabalhar já sabendo como seria o trajeto. Muitas cantadas, assovios, olhadas de homens que nunca vira antes, de olhos que pareciam conhecê-la bem, pois apreciavam seu corpo, seu jeito, sua boca, seus cabelos. Ela odiava e chegava ao trabalho odiando principalmente os colegas que diziam que ela deveria se arrumar mais e ser mais feminina.

Em um desses dias comuns, no mesmo trajeto, um homem, além de chamar sua atenção com um psiu, passou-lhe a mão na bunda. Atordoada, Gisela tentou não olhar para seu rosto. Deu dois passos rápidos, fugindo da agressão, mas parou de repente e resolveu se virar para o homem. Ele continuava parado, olhando, rindo, parecendo esperar que ela virasse para trás. Gisela reparou o uniforme de trabalhador e viu que ele estava na frente de uma obra iniciada há alguns meses.

Foi então que teve a ideia de ir até uma delegacia e registrar boletim de ocorrência contra o homem. Ao entrar na delegacia sentiu o mal estar que todos devem sentir ao chegar num lugar como esse . Dirigiu-se ao policial e contou o que havia acontecido há poucos minutos. Eu posso reconhecê-lo, ele ainda deve estar lá, no mesmo lugar.

Moça, mulher passa por isso mesmo. Mulher bonita, então, a senhora nem deve imaginar como é. Tem que tomar cuidado, não pode usar roupas provocantes (Gisela diminuta no camisão jeans e nas calças pretas), nem muita maquiagem (Gisela ressecada com rosto lavado de sabão de banho) e cabelo solto (Gisela no corte de sempre, recuado atrás das orelhas), essas coisas deixam os homens loucos. Ainda mais esses de obra... O homem parou e tomou um gole de café... que passam o dia todo com um monte de homem, sentindo cheiro de homem, bafo de homem, roupa de homem. Fica doido quando vê mulher.

Gisela não conseguiu responder, embora seu peito estivesse cheio de ar. A senhora quer uma água? É bom pra se acalmar, eu vou buscar ali dentro. Todos pensariam que o moço era muito atencioso e que a tratava melhor do que outros. Gisela pensava que poderia matá-lo ...

Ontem sua mãe disse que vira um rato passar pelo quintal. Se desesperou: ele deve viver aqui em casa. Tenho horror a rato, minha filha! Gisela ficou de comprar chumbinho. Ela colocaria num pedaço de pão e do dia para a noite encontrariam o ratinho morto. Mas que nojo! No caminho do trabalho ela parou no camelô e comprou o veneno. Esquecida, porém, do problema do rato, deixara o chumbinho na bolsa.

… e enquanto o policial foi buscar sua água, retirou da bolsa o vidrinho com bolinhas pretas que mais pareciam minúsculas bilhas que jogava na infância. Disfarçou pegando um panfleto sobre violência doméstica no balcão e lançou no copo de plástico ainda cheio de café três daqueles bilhas que serviam para matar ratos.

Aguardou mais alguns segundos o retorno do homem com o copo d'água que bebeu muito agradecida pelo favor e pelo conforto. Muito obrigada, bom trabalho. Não há de quê. Tome cuidado na rua. Gisela saiu da delegacia sentindo a quentura do olhar daquele policial, do outro que conversava junto à porta, do delegado, do chefe de polícia, do secretário de segurança. Todos na sua nuca.

Resolveu sair armada, a partir desse dia. Cada dia uma forma diferente de matar.

E matou: o homem da obra com uma faca de cozinha bem amolada. O cara do trabalho com uma vistosa maçã envenenada. O cobrador do ônibus com um tiro. O frentista de posto, queimado. O marido da tia-avó jogando-o da escada.

Matou-os todos, mas preferiu não ter matado quando numa quarta-feira, voltando do trabalho, foi levada para dentro de uma obra abandonada. Arrependeu-se quando sentiu sobre si os escombros dos homens assassinados.   

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